UM PIONEIRO DO PATRIMÓNIO
Desde há uns tempos que o Património está na ordem do dia. Após o 25 de Abril, dezenas de Associações de Defesa do Património cobriram o País, mostrando que o problema não dependia apenas das entidades oficiais. Hoje existe um Instituto Português do Património Arquitectónico e Arqueológico – o IPPAR – e o património construído tem honras de prioridade na política da Secretaria de Estado da Cultura. As carências e os problemas são muitos, apesar da acção do Estado, das autarquias, e das populações interessadas. Os jornais fazem-se eco dessas dificuldades com frequência, mostrando que o Património faz hoje parte da consciência do País.
Mas nem sempre foi assim. Ao longo do século dezanove e nas primeiras décadas deste século, o património arquitectónico apaixonou alguns eruditos que a ele dedicaram as suas vidas, no meio da indiferença, tanto das entidades oficiais como da população em geral. Desde Estácio da Veiga, com trabalhos fundamentais no Algarve, o Abade de Baçal, em Bragança, e Martins Sarmento no Minho, até Virgílio Correia em Coimbra, Aarão de Lacerda no Noroeste, Vieira da Silva em Lisboa e mais recentemente Reinaldo dos Santos, Túlio Espanca em Évora e Mário Tavares Chicó. Foram pioneiros de uma época heroica e desbravaram caminhos que depois foram seguidos e aprofundados. Como franco-atiradores, investigaram com paixão, sem apoios e perante a indiferença geral. Hoje os seus nomes constam obrigatoriamente de qualquer bibliografia.
Já neste século, e na esteira de Leite Vasconcelos, autor da monumental “Etnografia Portuguesa”, geógrafos e etnógrafos, como Orlando Ribeiro, Jorge Dias, Ernesto Veiga de Oliveira e Michel Giacometti, percorreram caminhos paralelos aos dos arqueólogos, descobrindo outros aspectos do nosso património cultural.
Mas a par destes trabalhadores eruditos, outros houve, modestos e obscuros defensores do Património, que contribuíram e muito para a salvaguarda da nossa herança cultural. É de um destes que se fala nesta crónica: Jeremias da Conceição Dias, que nasceu e viveu em Marvão, à defesa de cujo rico património dedicou a sua vida. Nascido em 1894 e desaparecido há poucos anos, este homem simples, mas clarividente e determinado, é um exemplo para todos aqueles, e que são muitos, de norte a sul, que se empenham na defesa e valorização do nosso património artístico e dos valores locais.
Alistado no Exército durante a 1ª guerra mundial, Jeremias Dias ofereceu-se como voluntário para combater em Moçambique contra os alemães da vizinha colónia do Tanganica. Mais tarde é preso e deportado para Angola, no rescaldo do movimento de 7 de Fevereiro de 1927 contra a Ditadura Militar, que abriu o caminho ao Estado Novo de Salazar. Demitido do Exército como sargento, regressa a Marvão, onde inicia uma acção de vigilância em defesa do aptrimónio daquela vila. Reintegrado após uma amnistia em 1965, passa à categoria de sargento-ajudante reformado.
Torna-se correspondente local de vários jornais, para melhor denunciar os atentados que punham em perigo o património de Marvão, ao mesmo tempo que era nomeado delegado no concelho dos Monumentos Nacionais (Junta Nacional de Educação). Lembro-me de uma pequena notícia publicada há muitos anos na Imprensa denunciando o abate que o proprietário queria efectuar dos frondosos choupos das margens do rio Sever, na Portagem, o que graças a essa denúncia não chegou a ser efectuado.
Nos anos 40 o Estado promoveu a primeira série de construção de pousadas. Nela estava incluída Marvão, e o edifício começou a ser construído no alto da Vila, sobranceiro às muralhas. Mas dizem as más línguas que sendo chefe do gabinete de Salazar um castelovidense, o dr. José Manuel da Costa, este, despeitado por não ter sido escolhida Castelo de Vide para a construção, conseguiu que a pousada não fosse instalada, sendo o edifício aproveitado para sede da Câmara Municipal.
Nessa altura, revoltado com a discriminação de que era vítima a sua terra, Jeremias Dias adapta a sua própria residência a estalagem à qual deu o nome de “Ninho d’Águias”. Comprada mais tarde pelo Estado e alargada, é hoje a Pousada de Santa Maria. A primeira vez que fui a Marvão, no início dos anos cinquenta, lá me alojei na estalagem, uma das primeiras com esta designação a abrir em Portugal. A estrada que subia a serra era de macadame esburacado e cheia de curvas apertadas. Passados uns anos a estrada é reconstruida, mercê da campanha feita por Jeremias Dias junto da Junta Autónoma de Estradas. Ficaram a chamar-lhe “a estrada do Jeremias”. É que, para além das denúncias na Imprensa, era incansável no envio de cartas ou telegramas de protesto às autoridades competentes.
Nos anos 60, o pároco da Vila resolveu vender os velhos sinos da Igreja de Santa Maria, então desafectada do culto,os quais foram enviados para uma fundição em Rio Tinto, perto do Porto. Jeremias Dias, depois de alertar toda a população, foi atrás dos sinos e conseguiu convencer o dono da fundição a esperar por uma decisão. Após uma vigorosa campanha de imprensa e junto de vários departamentos do Estado, os sinos voltaram a Marvão por entre o regozijo geral e foram recolocados na torre de Santa Maria. Conseguiu ainda verbas para o restauro desta igreja, onde hoje se encontra instalado o Museu Municipal.
Aos pés da serra de Marvão corre o rio Sever, no lugar da Portagem, já citado. Ladeado por belíssimos choupos, o local é aprazível. Jeremias Dias teve a ideia de se construir aí uma piscina fluvial, pedindo o apoio da Hidráulica. As obras demoraram anos, com constantes interrupções, mas hoje a piscina lá está, sendo muito frequentada no verão pela juventude dos arredores e ate por espanhóis que atravessam a fronteira.
Os casos citados são apenas alguns dos exemplos do que foi a decidida e permanente luta de Jeremias Dias em prol da valorização de Marvão. Desde a montagem do serviço de recolha de lixo até à fundação da Liga dos Filhos e Amigos de Marvão, que não foi por diante, muitas foram as iniciativas deste pioneiro da defesa do património. Defensor activo da memória da sua terra, Jeremias da Conceição Dias tinha o culto das lápides: promoveu a colocação de algumas no concelho, evocativas de factos ou figuras de interesse para a história local. Bom seria que a Câmara Municipal promovesse uma homenagem pública a quem tanto lutou por Marvão e mandasse também afixar uma lápide em sua memória na casa onde passou os últimos anos de uma vida de permanente e activa defesa do património. Aqui está um homem que também não pode ser esquecido pelos seus conterrâneos.
PEREIRA, Nuno Teotónio. “Um pioneiro do património”. Público, 10 out. 1994, p. 40.
Existe original impresso, 2 p.
Republicado em Tempos, Lugares, Pessoas. S.l.: Contemporânea e Jornal Público, 1996, pp. 12-15 [Com o título “Um pioneiro do património: Jeremias da Conceição Dias”]
Republicado em BUCHO, Domingos; LADEIRA, Raúl. Marvão: palavras e olhares, 2002, pp. 154-156 [com o título: “Jeremias da Conceição Dias, um pioneiro do património”]
JEREMIAS DA CONCEIÇÃO DIAS (1894-1983). Militar, ativista do património