O COMBATE PELA ARQUITECTURA MODERNA EM PORTUGAL: UM CONTRIBUTO AÇOREANO
Nos primórdios do Estado Novo assistiu-se em Portugal a uma vaga modernista na arquitectura que colocou o nosso país a par com as correntes de vanguarda que então se afirmavam na Europa. No quadro da vigorosa política de obras públicas protagonizada pelo dinâmico ministro Duarte Pacheco e viabilizada pelo saneamento financeiro operado por Oliveira Salazar, foram erguidos pelo Estado numerosos edifícios de carácter ousadamente moderno, que rompiam com a incaracterística e eclética arquitectura do início do século. Esses edifícios, construídos ao longo dos anos trinta, ainda hoje testemunham a clara opção contemporânea que os seus autores, quase todos ainda jovens, imprimiram então às obras que o Estado lhes encomendara e que complacentemente era aceite como expressão do esforço de renovação a que o governo salazarista metera ombros. Efectivamente, quase se poderia dizer:a Estado Novo, Arquitectura Nova.
No entanto, os protestos dos círculos mais conservadores não se fizeram esperar: as novas construções começaram a ser acusadas de introduzirem no país um estilo internacionalista que ia contra as expressões tradicionais da nossa arte de construir, reclamando-se “uma arquitectura portuguesa para Portugal”.
Estas vozes estavam aliás em consonância com uma forte corrente anti-modernista na Europa cuja ponta-de-lança mais agressiva era representada pela ideologia hitleriana que havia subido ao poder na Alemanha em 1933 e cuja componente soviética dominava a produção artística na época de Estaline. Tratava-se assim nada menos, nos regimes de cariz totalitário, do que utilizar as artes, com realce para a arquitectura, como instrumentos de inculcação ideológica, afirmando o poder do Estado sobre toda a sociedade, numa linha de exaltação nacionalista.
Foi nesta onda que o Estado Novo embarcou, ao lançar-se num processo de fascização do regime, no clima gerado pela guerra civil de Espanha e pelo ascenso dos regimes ditatoriais e totalitários na Europa. Passa assim a ser estritamente controlada a expressão arquitectónica, encomendando a profissionais afectos ao regime (entre os quais alguns dos que se tinham destacado no surgimento do modernismo entre nós) projectos com a obrigatoriedade de exprimirem com clareza o que considerava ser uma arquitectura “genuinamente nacional”.
Foi assim que começaram a surgir edifícios e promoção pública, uns de feição monumental, destinados a exaltar os valores da ordem e da autoridades, outros cenograficamente enfeitados com elementos avulsos copiados da arquitectura rural, buscando um pretensioso e artificial regionalismo. Foi a esta contrafacção grosseira, ora aceite pelos próprios autores dos projectos, ora imposta quando tal não sucedia, que foi dada a designação pejorativa de “português suave”, alusiva a uma marca de cigarros então muito comum, e cujo apogeu se verificou ao longo de toda a década de 40.
Com a derrota dos fascismos na 2ª guerra mundial esta concepção retrógrada e cerceadora da liberdade de expressão dos arquitectos foi naturalmente varrida e a reconstrução das cidades devastadas na Europa ocidental foi realizada em obediência aos princípios do Movimento Moderno. No entanto, para lá da Cortina de Ferro e nas ditaduras ibéricas o poder não abriu mão dos seus desígnios de controlo da produção artística como um dos meios de subjugar a sociedade. E foi por isso que o direito à liberdade de expressão na arquitectura obrgou a um combate árduo por parte dos arquitectos mais conscientes da dignidade da profissão. Combate no terreno cultural que naturalmente coincidia com aquele que se desenrolava no campo político-social contra todo o tipo de ditaduras.
O primeiro grande embate deu-se entre nós no I Congresso Nacional de Arquitectura em 1948. Promovido pelo governo para glorificar “Quinze Anos de Obras Públicas”, foi tomado em mãos pelas novas gerações de arquitectos, que aí proclamaram a sua carta de alforria, exigin do o fim da censura à produção arquitectónica. Sob a pressão dos acontecimentos, e consciente do anacronismo das posições que até aí vinha impondo, as autoridades foram abrandando a coacção e a vigilância censória, fechando do olhos à liberdade de concepção que empresas públicas, organismos autónomos e algumas Câmaras Municipais foram permitindo. Mas a resistência às directivas do poder foi ainda uma constante ao longo da década de cinquenta, para acabar de vez com os figurinos oficiais que, entretanto, alguns arquitectos tinham interiorizado.
É neste quadro que o projecto para a construção de uma praça na nova marginal de Ponta Delgada faz surgir o motivo para um movimento de contestação encabeçado por um jovem arquitecto micaelense. Apesar de nessa altura residir em Lisboa, João Correia Rebelo, filho do consagrado pintor Domingos Rebelo e pai do também pintor Miguel Rebelo, sentiu-se ferido no seu orgulho açoreano e denunciou o pastiche que se preparava fazendo publicar no jornal “Correio das Ilhas” de 10(8/53 um desenho satírico com o sugestivo título “Arquitectura ou Mascarada”, também reproduzido no nº 49 da conceituada revista “Arquitectura”.
No entanto, o sentido cáustico da denúncia, ajudado por um grafismo muito imaginativo, não foi suficiente para fazer reflectir as autoridades locais e parar um empreendimento por estas considerado como um importante melhoramento para a cidade.
Mas João Rebelo, que à data militava numa organização de jovens artistas e intelectuais católicos empenhada em fazer aceitar também pela Igreja as novas formas da expressão artística – O Movimento de Renovação da Arte Religiosa – não desarmou. E logo escreveu, ilustrou e paginou, publicando-o à sua custa, o que terá sido porventura o mais contundente e mordaz libelo contra a retórica nacionalista que então dominava a arquitectura portuguesa, voltando a denunciar, agora com redobrada eloquência e vigor, o mesquinho decalque do Terreiro do Paço lisboeta, nessa altura já em plena construção.
Trata-se de um desdobrável a cores de teor reivindicativo mas informado por um eficaz sentido pedagógico, endereçado a todos os responsáveis, não só do poder político, mas também da sociedade civil e simples cidadãos (senhor ministro, senhor governador…, senhor industrial, senhor prior…, senhor arquitecto, senhor engenheiro…, mestre, minha senhora). Nesse documento, que foi largamente difundido em Ponta Delgada, João Rebelo começa por afirmar, com a ajuda de ilustrações, que certa “arquitectura” não é arquitectura, acrescentando: “É preciso um embotamento total do senso poético das formas; um desprezo absoluto pelas novas coordenadas em que se situa a vida do homem contemporâneo; nada haver entendido da mensagem da tradição – para se aceitar, fomentar e apadrinhar estas formas como legítimas expressões da arquitectura contemporânea”.
Entre os exemplos aduzidos do que “não é arquitectura”, figuram o Teatro Micaelense, o Comando Marítimo dos Açores, o palácio dos CTT e, de novo, os edifícios da nova praça de entrada na cidade, mostrando a sua estrutura de betão armado camuflada por uma linguagem de sabor setecentista.
A estes casos João Rebelo contrapõe uma série de exemplos de clara contemporaneidade no seu tempo “quando a arquitectura não andava pelas repartições e ninguém falava em estilos”. E aí aparecem, entre outros, os Paços do Concelho, a igreja do Colégio, a Matriz, o Solar do Livramento e a igreja de S. Francisco da Ribeira Grande.
A ilustrar todo o folheto, numerosos utensílios de design contemporâneo (cadeiras, automóveis, candeeiros, puxadores de porta) e também exemplos de arquitectuar moderna, como as igrejas da Pampulha, de Oscar Niemeyer, e de Ronchamp, de Le Corbusier, e a sede da ONU em Nova York – em tudo produtos de uma nova estética e expressões artísticas do mundo que nos rodeia.
Mas o desdobrável, com o seu quê de grafismo panfletário, contém no interior um texto assinado pelo arquitecto, onde este se aplica a explicar os fundamentos da nova arquitectura e que é seguramente um dos mais belos e eloquentes manifestos produzidos então entre nós nessa matéria. Vale a pena transcrever algumas das passagens mais significativas e lê-las no contexto de uma época em que “a harmonia está escandalosamente arredada da arquitectura que temos vindo a erguer”.
“Ora, quem hoje em dia se dispuser a emitir um juízo valorativo sobre arquitectura contemporânea, precisa de facto CHEGAR, e trazer os pulmões oxigenados. Precisa de algum modo haver estabelecido contacto (um contacto que se não quede epidérmico) com a chamada NOVA ARQUITECTURA, precisa haver penetrado a essência dos seus princípios directores, haver verificado a maleabilidade desses mesmos princípios, a sua capacidade de se adaptarem ao modo particular de ser de cada homem, de cada região, de cada programa, precisa haver testemunhado o seu sincronismo com as actuais formas de organização do trabalho e as exigências das novas fontes de produção, precisa haver sondado as possibilidades incomensuráveis desses princípios na solução de problemas que atormentam a existência do homem contemporâneo, como, por exemplo, o da habitação condigna e acessível a todos: precisa de haver descoberto os elos que prendem a nova arquitectura às mais sadias e autênticas expressões do passado e lhe asseguram a continuidade histórica, que é a essência da verdadeira tradição. Precisa de tudo isto e de mais ainda: – de se haver deixado penetrar pela natureza da mensagem plástico-espacial de que esses princípios são portadores.
Só quem se der a esse trabalho se não escandalizará com a nossa indignação e rejeitará, connosco, as formas abortivas que temos vindo a erguer.”
E mais adiante, alertando contra o conceito de tomar a modernidade como mais um estilo formal e não como uma atitude em consonância com o tempo em que se vive:
“De quanto aqui se diz, não se infira, contudo, que, por exclusão, fica automaticamente sancionada toda a arquitectura que se apresente rotulada de moderna. A mesma atitude oca, superficial, vazia de conteúdo anímico, epidérmica, de puro formalismo, que tem gerado a arquitectura pseudo-tradicional, quando aplicada no sentido oposto (isto é do «moderno») conduz igualmente aos mais funestos resultados.”
E num apelo profético, fazendo antever aquilo que efectivamente acabou por acontecer, para bem da nossa arquitectura:
“Por outro lado, tivemos sempre presente que a responsabilidade da arquitectura não é fardo que pese aos ombros de um indivíduo, mas é antes algo de fluído que se alastra e perde pelos meandros da colectividade que a gera e torna possível, pelas suas instituições, pelo seu modo de vida, pela sua mentalidade, pela sua cultura. E porque assim é, acham-se comprometidos toda a boa intenção e esforço honesto que não sejam secundados por uma mentalidade colectiva esclarecida.
Este trabalho pretende ser um instrumento desse esclarecimento.
Não aponta soluções. Limita-se impiedosa, mas objectivamente, a diagnosticar enfermidades, sem o que , de nada vale a existência de medicamentos e de terapêuticas…
Dê-se a palavra aos POETAS.
Deixe-se, livremente, dizerem o que têm a dizer.
E a arquitectura nacional virá por si, naturalmente, sem nomes, sã, escorreita, tal como outrora…”
O belo texto de João Rebelo é assim um verdadeiro manifesto pela arquitectura moderna, numa altura em que a mentalidade dominante e os poderes públicos ainda a consideravam suspeita e por isso a rejeitavam nos órgãos de informação e nos gabinetes das repartições oficiais. À distância de meio século, quando a arquitectura contemporânea portuguesa é internacionalmente admirada pelo talento de Álvaro Siza Vieira, pode parecer que o seu advento entre nós se processou de forma natural, com as inevitáveis polémicas pelo meio. Mas não: ela exigiu um combate empenhado e áspero, por vezes mesmo duro, contra ao cânones de uma arquitectura que diziam ser “nacional”, mas que não passava da mascarada denunciada pela coragem e lucidez de João Correia Rebelo. Este arquitecto, há muito vivendo no Canadá, bem merece dos açoreanos um preito de homenagem por ter feito ouvir uma voz das Ilhas neste combate pela autenticidade da nossa arquitectura.
Breve nota biográfica:
João Correia Rebelo nasceu em 18/7/1923, em Ponta Delgada, tendo frequentado o Liceu Antero de Quental e obtido em 1950 o diploma de arquitecto pela Escola de Belas Artes de Lisboa. Projectou vários edifícios no Continente e nos Açores com destaque para o Colégio de S. José de Cluny e o Seminário Diocesano em Ponta Delgada (o primeiro em co-autoria com o arquitecto Manuel Alzina de Menezes) e a estalagem da Serreta na Terceira – tudo edifícios que são marcos da arquitectura contemporânea nos Açores. Fundador do Movimento de Renovação da Arte Religiosa, é membro do Instituto Cultural dos Açores e trabalhou durante vários anos em Lisboa no sector da habitação social das Caixas de Previdência. Em 1969 radicou-se em Montréal, onde participou em numerosos projectos, associado a arquitectos canadianos.
PEREIRA, Nuno Teotónio.“ O combate pela Arquitectura Moderna em Portugal: um contributo açoriano”. Atlântida. Instituto Açoriano de Cultura, Vol. XLIV, 1998-1999, pp. 229-235.
Existe original impresso, jun. 1999, 6 p.
UMA VIDA NÓMADA, UMA OBRA FRAGMENTADA, UMA PESSOA INTEIRA
Ao evocar a criação e a postura de João Rebelo como arquitecto, dois traços fundamentais da sua maneira de ser avultam imediatamente, numa primeira apreciação: o seu grande talento e a sua extrema modéstia. Terá sido esta última uma das razões para que o valor da sua obra como arquitecto não tivesse sido reconhecido mais cedo. Mas houve outra razão, de natureza material: o nomadismo que condicionou a sua vida. Tal circunstância conduziu a uma produção dispersa e fragmentada e impediu-o de constituir atelier próprio de carácter duradouro, onde a sequência dos projectos permitisse construir uma obra com consistência e visibilidade.
Efectivamente, João Rebelo foi um homem dividido entre os Açores e o Continente, numa dicotomia dilacerante entre o apelo das raízes e as oportunidades de trabalho. As cartas enviadas para amigos em Lisboa ajudam a perceber o que foi essa vida nómada, que culminou com a partida para o Canadá, onde a família se fixou definitivamente.
Concluído o curso na então Escola de Belas Artes de Lisboa, assentou arraiais na capital, saltando de atelier para atelier, em colaborações temporárias com colegas estabelecidos. Foi neste período, em que consolidou a sua formação profissional e humana, que partilhou os anseios duma geração empenhada no combate pela arquitectura moderna impulsionado pelo Congresso de 1948. Fez assim parte do grupo de artistas e intelectuais fundadores do Movimento de Renovação da Arte Religiosa, que procurava fazer aceitar pela Igreja, contra a mentalidade dominante, as modernas expressões artísticas.
Foi neste quadro que João Rebelo revelou uma outra faceta do seu carácter: a recusa do conformismo e da indiferença, não se resignando a ficar de braços caídos perante o que acontecia à sua volta e que merecia a sua indignação. Assim, depois de ter publicado no Correio dos Açores uma sátira intitulada “Arquitectura ou Mascarada?” escreveu e ilustrou, imprimindo-o à sua custa, o que terá sido porventura o mais contundente e sarcástico libelo contra a retórica nacionalista que então dominava a arquitectura portuguesa, denunciando, com extrema eloquência e vigor, o mesquinho decalque do Terreiro do Paço lisboeta então em construção na nova avenida marginal de Ponta Delgada.
Em 1956, perante a oportunidade de um emprego público, onde se manteve durante quatro anos, regressou a S. Miguel. Em carta datada de Julho de 1960, descreve as condições em que trabalhou e que ilustram uma situação na altura bastante comum entre os arquitectos que trabalhavam na “diáspora”, isolados e cercados pela mentalidade conservadora dominante fora das grandes cidades de Lisboa e Porto.
“A minha actual situação como arquitecto da Junta Geral do Distrito, onde, a partir do dia 22 de Julho, sou motivo duma queixa da Direcção de Obras Públicas pela única e simples razão de não me haver resignado a ser desenhador das concepções plásticas e estéticas do Director – um engenheiro de mentalidade obsoleta e cristalizada – que me acusa por esse facto de haver desobedecido à hierarquia e acaba de propor a rescisão do contrato… Do que tenho conhecimento até à data, é posta em causa a competência do serviço a meu cargo e todos os projectos elaborados são apelidados de ‘manias de novidade’, ‘soluções anti-económicas’ e de, esteticamente, serem ‘uns verdadeiros monstros’.
No meio deste isolamento todo recorri à tese do Pardal Monteiro que consta do livro do 1º Congresso Nacional de Arquitectura ‘Do Julgamento dos Projectos de Arquitectura’ e limitei-me a pedir que o julgamento definitivo fosse da competência do Sindicato Nacional dos Arquitectos… Agora, que o lugar de Presidente foi ocupado por um antigo coronel, a incompreensão em face dos problemas específicos da Arquitectura agravou-se a ponto de se tentar por todos os meios acabar com o lugar de arquitecto.
Podes calcular os prejuízos que isto traz à minha vida. Mas estou na disposição de tudo largar e dedicar-me à profissão liberal. Antes, porém, quero que se faça justiça à profissão.”
Uma outra faceta do seu carácter é revelada nestas linhas: a coragem em enfrentar a adversidade e a firmeza com que sempre defendeu a dignidade da profissão.
Mas logo se abre uma nova fase, infelizmente também de curta duração, cujo auspicioso começo descreve em carta datada de 1961.
“Como sabem, a Junta era um pesadelo… tudo se encaminhava e convergiu para que nesse mesmo dia 29 de Dezembro, ficasse resolvida a minha situação. Consequências imediatas no plano profissional: o médico amigo com quem me havia incompatibilizado a propósito da moradia, vinha confiar-me o projecto para a futura Clínica. A pousada para as Sete Cidades que, estando na Junta, teria que projectar oficialmente acabava há dias de me ser entregue. Fora isso, as pessoas, sabendo-me livre da Junta, têm enchido o atelier de serviço. Os rapazes que comigo trabalham estão outros com esta assistência permanente e eu só lastimo não ter estagiários para me ajudarem a desembrulhar tais assuntos. Com esta situação nova, o tempo ficou todo bloqueado e só agora, com a entrega do ante-projecto da Serreta, começo a conseguir umas pequenas e fugidias ‘clareiras’”.
Neste período, João Rebelo envolve-se em actividades de divulgação cultural, como a participação activa numa Semana de Estudos (1) e a organização duma exposição de arquitectura religiosa contemporânea (2). Ao mesmo tempo ia-se consolidando uma consciência política a partir dos problemas sociais, como mostra em carta datada de Março de 62.
“Aparte o lado profissional, que me tem absorvido intensamente, tenho constatado realidades tremendas que pesam sobre nós, católicos, e que exigem uma acção imediata. Por exemplo, a ilha pertence no domínio agrário a meia dúzia de grandes senhores, nos quais ninguém ousa tocar e que se vêem de posse de enormes extensões de terras pela única via da herança ou do casamento…
A par disto, há uma camada jovem cujo abandono e falta de estímulos impressiona! Por exemplo: um grupo com preocupações culturais e intelectuais reunia-se periodicamente, na ânsia de evasão à pasmaceira que invade os meios burgueses da terra, consagrados à má-língua! Resultado: intervenção da Pide e clima de medo. Falei há dias com um destes jovens, que se me dirigiu num restaurante da cidade: ‘Senhor arquitecto, lamentamos muito a sua saída desta ilha! O senhor faz falta! Aquela Semana de Estudos foi tão útil para nós!’
É preciso deitar a mão a esta juventude que se consome aqui, no vazio, e cujas ambições se diluem no nevoeiro… Por que não levar a efeito uma II Semana de Estudos?… Talvez fosse possível interessar o Instituto Açoreano de Cultura para subsidiar a iniciativa.”
Tendo entretanto escasseado as encomendas, regressa a Lisboa onde ingressa na Federação das Caixas de Previdência – Habitações Económicas, integrando a dinâmica e inovadora equipa de projectistas liderada pelo arquitecto João Braula Reis. Está por fazer a história deste organismo, cuja acção, nas décadas de 50 e 60, prestou um importante contributo no sentido de ultrapassar os conceitos retrógrados e paternalistas que dominavam a habitação social desde os primórdios do salazarismo.
Nestes anos, e para além do trabalho na Federação, João Rebelo prosseguiu, em ateliers da capital, o nomadismo profissional de que nunca se libertou: simples colaboração em alguns casos, co-autoria noutros, porventura verdadeiras autorias noutros ainda.
Em 1969 dá-se a derradeira ruptura com a partida para o Canadá, respondendo ao apelo de familiares e patrícios, na esteira da saga migratória de açorianos para o Novo Continente. Na impossibilidade de ver reconhecido o seu diploma académico, viu-se mais uma vez numa situação de subalternidade, trabalhando em gabinetes de Montréal , situação que descreve em carta de Junho de 1970.
“Falemos agora da profissão. Depois de um ano a pormenorizar ferro (escadas, guardas e tudo o mais que a construção metálica aqui requer), vou finalmente conhecer o que seja trabalhar num atelier de arquitectura em grande escala: Papineau, Gerin-Lajoie, Leblanc, Edwards, architectes. Um anúncio aparecido num jornal pedia arquitectos juniors (2 a 3 anos de experiência) , intermediaires (5 anos de experiência) e seniors. Embora não sendo o meu diploma reconhecido aqui no Canadá, eu e o Mattoso decidimos responder (…). Em face das obras já realizadas, (…) aceitaram-nos como arquitectos intermediaires (…) e destinaram-me um trabalho au niveau du concept. Podes calcular o que isto representa depois de uma ano inteiro a desenhar cantoneiras, parafusos e porcas!
O trabalho em que nos vamos integrar é a aerogare para o novo aeroporto de Montréal (…).”
No entanto, a favorável expectativa gerada não durou muito. Em Novembro de 71 escrevia para Lisboa:
“Eu, desiludido com o atelier, onde o trabalho é de uma imbecilidade incrível. Depois da fase correspondente ao ante-projecto do Novo Terminal, foram postos a andar numa manhã 6 colegas, sem outra explicação a não ser falta de trabalho. Aqui é assim! Foi um dia de pânico incrível, à espera da nossa vez. Depois houve uma reunião e as coisas ficaram um pouco mais esclarecidas. Eu, o Mattoso, uma polaca e um húngaro, continuaríamos com trabalho assegurado até ao fim do projecto. Respirámos fundo.”
E em Abril de 72 acrescentava:
“Profissionalmente, o trabalho decorre sem qualquer interesse. Para compensar a frustração, com mais alguns colegas, decidimos formar um “team”, o “team six”. Já dispomos de um pequeno local de trabalho. O que sairá daqui?… Isto é muito duro.”
Fixado definitivamente no Canadá, pondo assim termo à itinerância que marcou a fase mais criativa da sua vida, João Rebelo viu serem-lhe negadas as condições para uma frutuosa maturidade profissional.
Do valor e interesse da sua produção arquitectónica, dispersa e fragmentada, reunida nesta exposição mercê dum esforço assinalável dos respectivos responsáveis, sob a égide do Instituto Açoriano de Cultura, outras vozes falarão. No âmbito deste texto cabe sobretudo pôr em evidência a actividade dum arquitecto que, assumindo firmemente os valores da autenticidade e da coerência na criação artística, protagonizou um caso exemplar de responsabilidade social e ética no campo da sua profissão. Na arquitectura, como na vida, João Rebelo foi uma pessoa inteira.
Notas
(1) Semana de Estudos só Instituto Açoriano de Cultura, Ponta Delgada, 3 a 8 de Abril de 1961 (nota dos editores)
(2) Exposição de Arquitectura Religiosa Contemporânea, Ponta Delgada, Janeiro de 1954. Foi inaugurada na Igreja de S. Nicolau, Lisboa, em 1953 (nota dos editores)
PEREIRA, Nuno Teotónio. “Uma vida nómada: uma obra fragmentada: uma pessoa inteira”. João Correia Rebelo: um Arquitecto Moderno nos Açores. Angra do Heroísmo: Instituto Açoriano de Cultura, 2002, pp. 13-17. [Catálogo de exposição]
Existe original impresso, set. 2002, 4 p.
JOÃO CORREIA REBELO (1923-2006). Arquiteto.