Atividade política Igreja católica

José da Felicidade Alves

Relembrar o que foram o pensamento e a acção do Padre Felicidade nos anos cruciais que antecederam o 25 de Abril é o que se procura fazer nas linhas que se seguem. E talvez melhor do que tentá-lo por meio de um testemunho pessoal seja mais eficaz e mais fiel penetrar nas ideias e nos propósitos de uma personalidade tão marcante na vida da Igreja e do País nesse período através das palavras que o próprio escreveu em documentos e livros de que foi autor.

Para tal, as fontes não escasseiam. É que, no curto espaço de dois anos, entre Abril de 1968 e o mesmo mês de 70, José Felicidade, a partir da exposição ao Conselho Paroquial de Belém, foi o impulsionador e coordenador dos Cadernos GEDOC, organizou e prefaciou um livro-chave para o conhecimento do que foi a oposição católica à ditadura e publicou ainda dois de sua autoria.

Para os que já conheciam o P. Felicidade e testemunharam este surto explosivo de escritos e tomadas de posição foi como se tivesse rebentado uma válvula de pressão: aquilo que ao longo dos oito anos como professor do seminário e dos doze que já levava como pároco de Belém terá porventura suportado em silêncio – talvez para não fazer ondas e não provocar escândalo – o Padre Felicidade não pôde calar mais e jorrou em torrente do seu punho.

É bem possível que o ambiente de que comungou em Paris ao frequentar o Instituto Superior de Estudos Ecuménicos e logo a seguir a vivência do Maio de 68 tenham contribuído para o despoletar de uma acção que não podia mais ser adiada. Mas de certeza que a principal razão que o levou à profética exposição ao Conselho Paroquial foi a situação concreta vivida no País e perante a qual a sua consciência não lhe permitiria permanecer silencioso.

Da Exposição ao Conselho Paroquial de Belém, 19/4/68, cujo teor constitui uma das peças acusatórias do processo no qual foi julgado pelo Tribunal Plenário em 1973 e que motivou uma chuva de queixas e acusações à polícia política e às autoridades:

A violência não é pois uma hipótese que se estuda em gabinete, para ver se deverá existir ou não existir. A violência existe! Está implantada e triunfante!
Violência das opressões políticas. Violência das explorações económicas. Violência das repressões policiais. Violência das intoxicações informativas monopolizadas. Violência das barragens ao funcionamento independente da Justiça. Violência do abandono a que são votadas milhares de pessoas sem meios de sustento, de saúde, de habitação, de cultura. Violência de certos tabus morais e sociais, segregados pelas estruturas de dominação. Violências profanas. Violências sagradas.
A violência é um facto bruto!
É tarefa difícil seleccionar as violências. A um cristão, porém, nunca é lícito recorrer à violência do ódio ou do desejo de vingança… ou ao desprezo pelos outros…
E tentará sempre evitar as violências que atinjam os inocentes ou que provoquem represálias de vingança…
Como cristão, impõe-se-nos estudar a violência à luz da Mensagem evangélica, através da História das intervenções de Deus na vida dos homens. Será Cristo um não-violente incondicional? Moisés terá ainda alguma coisa a dizer-nos? As guerrilhas de Deus são etapas obsoletas da Antiga Aliança?
… É que na História do nosso Deus não faltam os gestos de violência para libertar os oprimidos, para derrubar os opressores. Basta ler o Êxodo…

Do nº 1 dos Cadernos GEDOC, 1/2/69, dos quais foram publicados 11 números até meados de 1970, considerados ilegais e apreendidos pela Pide e que por isso foram também fundamento para julgamento em Plenário em conjunto com três companheiros do Movimento.

Situamo-nos francamente na linha da vanguarda cristã… naquela zona da Igreja por onde ela avança, ou procura o seu caminho, ou ensaia novos cometimentos.
Desejamos prestar ouvidos atentos aos apelos dramáticos do mundo de hoje… Queremos lançar raízes no passado; mas, a partir daí, lançarmo-nos nos largos horizontes da descoberta, batidos pelo sol da esperança.
Os textos que publicamos não pretendem fixar posições; nem sequer se pode concluir que devamos estar de acordo com eles. São oferecidos à reflexão crítica dos leitores… para que possam formar uma opinião pessoal esclarecida e documentada… Assim nós formaremos uma autêntica cooperativa espiritual, pelo intercâmbio das nossas leituras, experiências e reflexões.
O Concílio não pode ser um logro! Os cristãos vivem em Portugal – e no mundo – um difícil momento, em que a esperança roça pelo desespero.
Contestar a Igreja? Não é esse o nosso programa, agora e aqui.
Direito a ter voz na Igreja? Mas também não é esse o nosso programa, agora e aqui.
Direito à informação objectiva? É isto.
E se nos recusam isso? Nós não queremos o caminho do desespero! … Queremos hoje uma Igreja-que-seja-outra, que aceite o fogo do Espírito nas suas entranhas… Mas não queremos outra-Igreja. Este é o caminho da esperança.
E os riscos? Sâo muitos, são graves, são reais. Mas não nos odiemos!

Da apresentação do livro “Católicos e Política – de Humberto Delgado a Marcelo Caetano”, de 1969, no qual e reúnem numerosos documentos e tomadas de posiçao de grupos ou personalidades católicas de oposiçao ao regime e à guerra colonial desde 1958.

Mais dia menos dia terá de se fazer a história crítica destes últimos anos da vida política portuguesa; e não deixará de ter lugar de relevo a presença ou ausência dos católicos na vida política, assim como a posição negativa ou positiva dos hierarcas e das estruturas clericais no funcionamento do sistema.
Com este Caderno começamos a recolher alguns textos. Qualquer destes documentos marcam uma viragem.
O que se publica adiante – sublinha-se fortemente – não é mais do que o esboço dum primeiro inventárioou antologia. Num regime em que a opinião pública esta destruída pela castração dos meios normais de informação, documentos deste género sofrem as condições precárias da clandestinidade. Passam de mão em mão, muitos perdem-se irremediavelmente.
– Foi sobretudo encerrado um período enum estilo de «participação» dos católicos na vida política: o que consistia em aparecerem em grupo a tomar posição como católicos, sobretudo através de documentos e abaixo-assinados;
– desta vez, e espera-se que não se volte atrás, os católicos entraram na liça, ombro a ombro com os demais cidadãos, sem preocupação do rótulo de católicos;
– os católicos não entraram em bloco monolíico: dispersaram-se e fragmentaram-se por todos os meridianos políticos, desde a extrema-direita fascista até à extrema-esquerda revolucionária;
– facto significativo: salientaram-se as posições de radicalismo socialista com inspiração profética haurida nos fermentos revolucionários do Antigo e do Novo Testamento.

Da introdução ao livro “Também nós queremos ser PESSOAS LIVRES”, Estudos e documentos sobre a liberdade e a responsabilidade do padre, como pessoa, no interior da Igreja, 1970:

Somos sem dúvida uma minoria na Igreja. Pelo menos uma minoria entre os que falam, isto é, os que dizem na rua o que segredam em casa, os que dizem em voz alta o que pensam em surdina.
Teremos de aceitar que nos expulsem ou tornem impossível a vida no interior da comunidade católica. Isso é para nós um drama dilacerante. Porque temos clara consciência de que fomos chamados, que temos um carisma de serviço evangélico. É que nós queríamos permanecer na Igreja e sermos nela membros de pleno direito e de pleno exercício. E foi para servir os crentes – para dar testemunho do Evangelho da liberdade, da paz, do amor, da verdade – foi para isso que nos apresentámos à «ordenação». Foi na frescura e no ardor da nossa juventude e na ingenuidade que nos demos ao ministério sacerdotal.
Dói-nos que não haja espaço para nós na Igreja do Amor e da Liberdade.
Não há diálogo. Não há espaço. Não há direitos para minorias.
Entretanto – enquanto a esperança não morre e o amor não arrefece – não abandonaremos a Igreja. E também não ficaremos nela. Considerar-nos-emos em estado de EXILADOS DENTRO DA IGREJA.

Do prólogo do livro “É preciso Nascer de Novo, testemunho acerca das motivações que me levaram a optar pelo casamento, das dificuldades com que esbarrei e das consequências que antevejo”, 1970:

Há dois anos (1968) desencadeou-se uma tempestade na minha vida de pároco e sobretudo de padre. Removido da paróquia, após um largo período de peripécias, e suspenso sine die do exercício das funções sacerdotais, encontrei-me na necessidade de recomeçar ou reorganizar quase de raiz a minha vida-de-homem; em especial:
– tive de procurar um emprego ou uma profissão civil, não sóa para assegurar a minha subsistência material e a independência económica, mas sobretudo para me inserir, através dos autênticos enraizamentos no trabalho com os demais homens, na construção do mundo entregue à inteligência e à energia de todos os seres humanos;
– preciso de repensar a minha situação face ao amor feminino e à vida conjugal (e é deste aspecto que vou falar);
– sinto a obrigação e a urgência de me iniciar nas responsabilidades que me competem em virtude da solidariedade de destino político com o meu povo.
Estes três capítulos da vida de homem inserem-se aliás na problemática global do padre que procura «ser gente»; e este debate do padre não é mais do que parte mínima dum total exame de consciência acerca do fenómeno Igreja, especialmente sob o ângulo de ela ser factor de libertação do homem, ou (pelo contrário) gérmen de des-humanização.
Conto com tudo. Até conto com as orações dos crentes em favor dum irmão que se interrogou, tacteou, e hesitou; e com a compreensão humana de simpatia, grave e silenciosa, ou com o testemunho discreto e reconfortante.

PEREIRA, Nuno Teotónio. “A voz de um profeta: Jose da Felicidade Alves”. Viragem: revista do Movimento Metanoia, nº 30, jan.-mar. 1999, pp. 3-5. [Seleção e notas].
Existe original impresso, 4 p.


O CASO DO PADRE FELICIDADE

1968, um ano de grandes acontecimentos:
– a nível internacional: Maio 68; invasão da Checoslováquia
– a nível nacional: a queda de Salazar da cadeira; ascensão de Marcelo Caetano
– a nível da oposição católica à ditadura: o caso do P. Felicidade

[Relativamente a esta última questão] Estava a sentir-se algum cansaço na contestação ao regime e também um abafamento do Concílio e o P. Felicidade veio trazer uma nova dinâmica: esta é a primeira constatação.

E precisamente num momento em que surgiam expectativas de evolução interna do regime, com alguns dos nossos combatentes a aderirem ao discurso inovador mas inconsequente de Caetano.

A segunda constatação é que justamente o caso Felicidade, que ganhou mais eco nesta fase do Marcelismo, constituiu uma prova antecipada de que o regime não era capaz de mudar. A Pide continuava toda-poderosa. A censura fazia sentir a sua força. A guerra colonial que Felicidade denunciava continuava. O conluio da hierarquia com o regime continuava,animando-nos a prosseguir a luta, sem hesitações. E isto para nós foi muito importante.

Depois, o vigor das denúncias de José da Felicidade Alves era imparável. Era como se se tivesse derrubado uma barragem onde as águas estavam represadas, provocando uma torrente caudalosa que arrastava tudo na sua frente.

É que José da Felicidade Alves desde há anos que fazia um enorme esforço de contenção para se calar. 10 anos antes, na sequência da campanha de Humberto Delgado e da carta do Bispo do Porto a Salazar, ao ser contactado por Francisco Lino Neto para subscrever os abaixo-assinados de católicos contra a ditadura, tinha respondido que ainda não estava preparado para isso. E essa contenção, que se tinha imposto a si mesmo, tinha terminado. Foi como que um acerto de contas com a História.

É isso que explica aquela febril actividade editorial, que começou justamente com “Católicos e Política” (explicar). Era Felicidade a subscrever, a mostrar-se solidário com todos esses acontecimentos antecedentes. E, a partir daí, aderiu a tudo, nomeadamente à CNSPP [Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos].

Mas não foi apenas na actividade editorial, em que os livros se foram sucedendo em catadupa. Foi também na mobilização das pessoas. E aqui o grande acontecimento foi o lançamento dos GEDOC [Grupos de Estudos e Intercâmbio de Documentos, Informações e Experiências] que teve um efeito multiplicador em reuniões pelo País. E abarcando todos os temas, sem exclusões. Foi todo um novo sector, juntando pessoas de várias gerações, inclusive muitos padres, que entrou organizadamente na luta contra a opressão.

E os que já vinham de trás, como eu e a Natália, ficávamos por vezes espantados com o inedetismo das tomadas de posição e das formas de luta.

PEREIRA, Nuno Teotónio. “O caso do P. Felicidade”. Original com notas manuscritas, 5 p.
Alocução na apresentação do livro Testemunho aberto: o caso do Padre Felicidade, editora Multinova, Lisboa, Palácio Galveias, 3 fev. 1999

JOSÉ DA FELICIDADE ALVES (1925-1998). Padre católico, escritor e editor