KEIL DO AMARAL E O SINDICATO DOS ARQUITECTOS
O Sindicato Nacional dos Arquitectos
Quando, em 1948, Keil do Amaral foi eleito Presidente da Direcção em Assembleia Geral de 9 de Março, o SNA tinha apenas 124 sócios. Criado por alvará de 29 de Junho de 34, no quadro da institucionalização do Estado Corporativo, sucedia à Sociedade os Arquitectos Portugueses, fundada em 1905, e extinta por força do Decreto-Lei 23 050 de 1933, que dissolveu as Associações de Classe e instaurou os chamados Sindicatos Nacionais. Neste quadro, enquanto médicos, advogados e engenheiros viam os respectivos sindicatos tomar a designação de Ordens, os arquitectos focavam-se pelo sindicato, talvez pelo facto de o curso de Arquitectura, ministrado pelas Escolas de Belas-Artes, não ter o grau de curso superior. À data do alvará, os sócios não passavam de 49. Foi assim que o Estado Novo, à sombra do Estatuto do Trabalho Nacional, promulgado na sequência da entrada em vigor da Constituição de 33, proibiu o livre associativismo e obrigou as agremiações representativas das diferentes actividades a adoptarem um figurino espartilhado pela nova legislação. Dentro deste regime, as direcções dos sindicatos tinham de ser homologadas pelo Governo, situação esta que levou, como se verá adiante, à demissão compulsiva de Keil do Amaral de Presidente do Sindicato.
Keil, que entrou para sócio do SNA em 3 de Março de Março de 1938, desde cedo começou a participar activamente na actividade associativa, tendo figurado como 1º vogal na Direcção eleita em 11 de Janeiro de 1941, presidida por Pardal Monteiro. No ano seguinte, em nova Direcção, ainda encabeçada por este último e eleita em 23 de Janeiro de 1942, desempenha o cargo de tesoureiro, sendo secretário Cottinelli Telmo, mais tarde eleito Presidente e que antecede Keil neste cargo.
Em 9 de Março de 1948 é Keil do Amaral eleito Presidente, à frente de uma Direcção composta ainda por Inácio Peres Fernandes como secretário, Dario Silva Vieira como tesoureiro e João Simões como vogal, figurando Pardal Monteiro como Presidente da Assembleia Geral, que tinha como secretários Leonardo de Castro Freire e Luís Américo Xavier.
O Congresso de 1948
É assim que no 1º Congresso Nacional de Arquitectura realizado em 48, Keil era já o Presidente eleito do SNA, aguardando homologação governamental. Tratava-se de uma iniciativa do Governo, juntamente com o de Engenharia, destinado a glorificar a política de Obras Públicas, que eram o tema de uma retumbante exposição. Foi simbolicamente aberto a 28 de Maio, no aniversário da chamada “Revolução Nacional”. Este Congresso, ainda presidido por Cottinelli Telmo, foi da maior relevância para a Arquitectura em Portugal. No ano anterior tinha sido criada em Lisboa a ICAT (Iniciativas Culturais Arte e Técnica) , e em 1948 no Porto a ODAM (Organização dos Arquitectos Modernos), ambas sob o impulso de uma nova geração combativa e onde predominava uma orientação política oposta à do regime. Foi assim que a profissão, aumentada em quantidade e dinamismo com um grande número de sócios jovens, tomou consciência no Congresso das peias que se punham à actividade dos arquitectos, mercê de figurinos impostos pelo regime no quadro de uma arquitectura dita nacional e portuguesa, e tomou conta dos seus destinos.
Através de grande número de comunicações e de vibrantes intervenções no plenário onde se reclamava liberdade de criação para os arquitectos, posições estas defendidas até por profissionais bem vistos pelo regime como Cottinelli Telmo e Jorge Segurado, as conclusões do Congresso representaram para o Governo um tiro pela culatra e constituíram uma verdadeira carta de alforria conquistada pela profissão.
Nelas se reclama, por exemplo, “que aos autores dos projectos não seja imposta pelos organismos oficiais qualquer subordinação a estilos arquitectónicos”, e ainda, “quanto à feição portuguesa dos novos edifícios, que o portuguesismo da obra de Arquitectura não continue a impor-se através da imitação de estilos do passado, pois a época que atravessamos deve ficar caracterizada em relação às outras com a diferenciação que entre elas existe”.
Keil do Amaral, para além de fazer parte da Comissão de Redacção das conclusões e votos, apresentara uma comunicação subordinada ao tema “A formação dos Arquitectos”, na qual se propugnava a remodelação do Ensino da Arquitectura e a construção de novos edifícios para o ministrar. É de assinalar que reformas daquele Ensino houve entretanto várias, e que a construção dos novos edifícios para as agora Faculdades de Arquitectura de Lisboa e do Porto está em vias de conclusão 45 anos após Keil ter formulado aquele voto.
Oito meses na Presidência do Sindicato até à demissão
Após a tomada de posse, Keil lança-se ao trabalho, juntamente com os colegas da nova Direcção, aproveitando do entusiasmo gerado pelo Congresso: “em pouco mais de oito meses, tantas sessões da Assembleia e reuniões da Direcção como nos três anos anteriores”, como revela em carta autografada enviada aos sócios quando a brutal comunicação do Subsecretário de Estado das Corporações e Previdência Social, com data de 18 de Agosto de 1949, o demite das funções para as que fora eleito pelos seus pares. Como refere nessa mesma carta, “nem uma só palavra se acrescentou a essa comunicação, para habilitar o Presidente da Assembleia Geral a informar o interessado e os membros do Sindicato sobre os motivos da demissão”.
Efectivamente, a brutalidade do gesto, próprio do regime de ditadura em que o País viveu durante 48 anos, encheu de espanto e indignação não só o atingido como os arquitectos no seu conjunto. E Keil do Amaral acrescenta:
“Quanto a mim, porque tenho a consciência orgulhosamente limpa e porque a frequência de decisões desta natureza já vai permitindo reconhecer-lhe com facilidade os fundamentos, creio não andar longe da verdade ao supor que quiseram acrescentar o meu nome à já longa lista de portugueses cujo entranhado amor à sua Terra e à Democracia e cuja relutância em bajular, aparentar sentimentos e convicções, ou em adaptar os seus actos às suas conveniências materiais lhes acarretaram o abandono forçado das suas actividades profissionais e uma como que situação de exílio no seu próprio País.
Fracas são, em verdade, as minhas credenciais para tamanha distinção. E digo distinção pois a experiência tem demonstrado que, à parte as privações materiais e a de poder contribuir eficazmente para o progresso e o prestígio de Portugal, nenhuma mercê do Governo tem sido susceptível de trazer maior consideração pública, mais frequentes e sinceras demonstrações de estima e de respeito, do que as demissões e outras penas impostas a alguns dos homens mais probos deste País.”
E mais adiante:
“Deixarei a Presidência da Direcção do Sindicato, mas quero fazê-lo de cabeça erguida, orgulhosamente, até. Nada de confusões com os motivos porque têm saído de outros Organismos Corporativos vários ‘bons portugueses’. Fica atrás de mim, realizada em estreita colaboração com colegas dedicadíssimos, uma obra séria e dignificante. E a finalidade desta carta é pedir-lhe que o verifique com os seus próprios olhos, para que não lhe possam restar dúvidas da correcção, do esforço e até do sacrifício com que desempenhei o cargo para que fui eleito.”
Nessa carta o Presidente demitido faz um rápido balanço do que foi o trabalho da Direcção nesses oito curtos meses. Enumera assim as melhorias na Sede e na organização dos Serviços; o trabalho de arrumação, aquisições, classificação e catalogação da biblioteca; a frequência e produtividade das reuniões documentadas em actas; o estudo da reorganização do Ensino da Arquitectura; a preparação de um serviço de assistência jurídica aos sócios e de um regulamento do exercício da profissão; a nomeação de comissões para a revisão e unificação das tabelas de honorários e da reforma dos Estatutos; o trabalho sobre o Regulamento Geral das Edificações.
A esta lista já longa haveria ainda que acrescentar a nomeação para sócios honorários do SNA de alguns dos mais notáveis arquitectos estrangeiros da época como Auguste Perret, Pierre Vago, Le Corbusier, Lúcio Costa, Frank Lloyd Wright e Patrick Abercrombrie.
E Keil do Amaral, depois de frisar que reverteram para o Sindicato os seus honorários de Procurador à Câmara Corporativa a que por inerência pertencia, termina emocionado:
“Eu sei que constitui um feio pecado de vaidade encarecer o próprio esforço, mas não me restava outro caminho nas circunstâncias que me colocaram. Tinha o dever de assegurar aos colegas que confiaram em mim que não traí a sua confiança e não têm que se envergonhar ou arrepender; que me dediquei de alma e coração, com os outros membros da Direcção do Sindicato, à tarefa de prestigiar a nossa Classe e o Organismo que a representa; que não tive, nem tivemos, outro propósito nem qualquer outra actividade dentro do Sindicato; e que tudo isso está patente e pode ser verificado por quem quer que esteja de boa-fé e ainda seja capaz de não negar, a priori, a boa-fé e a honestidade dos que não comungam nos seus ideais.”
Keil e o Sindicato após a demissão
Perante a demissão compulsiva de Keil do Amaral, o SNA não se mostrou conformado: a 20 de Dezembro uma comissão delegada da Assembleia Geral envia um ofício ao Governo pedindo que seja revogado o despacho que retirava o sancionamento a Keil. Como era de esperar, de nada resultou tal diligência: em carta de 1 de Maio de 1950 o Subsecretário de Estado confirmava a decisão tomada.
Entretanto, desde Outubro de 49, Inácio Peres Fernandes assumia interinamente a Presidência da Direcção. E veio a verificar-se, ao longo de sucessivos mandatos deste arquitecto, mais tarde consagrado como Presidente Honorário da Associação dos Arquitectos Portugueses, constituída após o 25 de Abril, que as linhas de acção de Keil tiveram continuidade. Em 1951 Peres Fernandes é formalmente eleito Presidente, numa lista em que Pardal Monteiro continuava na Presidência da Assembleia Geral.
E Keil do Amaral era a figura tutelar que continuava a inspirar muito do que se fez desde então em termos de trabalho associativo. O Inquérito à Arquitectura Regional, delineado por Keil e por ele laboriosamente organizado, foi o símbolo dessa actividade que nunca se cansou de dedicar à causa da Arquitectura e ao organismo que representava a profissão que tanto ajudou a dignificar.
PEREIRA, Nuno Teotónio. “Keil do Amaral e o Sindicato dos Arquitectos”. Keil do Amaral o Arquitecto e o Humanista. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 1994, pp. 99-102 [Catálogo de exposição]
Republicado em Escritos: 1947-1996: selecção. Porto: FAUP Publicações, 1996, pp. 274-281
AMARAL, Francisco Keil do (Lisboa, 28-4-1910 – Lisboa, 19-2-1975)
É um dos nomes mais marcantes da Arquitectura portuguesa deste século. Para além da actividade profissional, teve uma postura cívica e política que incomodou muitas vezes o regime do Estado Novo e que o levou a ser uma referência ética para toda uma geração de arquitectos, chegando a ser preso pela PIDE.
Vencedor do concurso para o pavilhão português da Exposição Universal de Paris em 1937, situado na margem do Sena, logo aí se revelaram as suas grandes qualidades. Influenciado pela arquitectura holandesa dos anos vinte, trouxe para Portugal o culto da relação com a natureza, de que deu sobejas provas ao projectar equipamentos para uma série de espaços verdes de Lisboa, como o Parque Florestal de Monsanto, o Campo Grande e o Parque Eduardo VII, trabalhos esses feitos no âmbito da Câmara de Lisboa. São também obra sua o bairro de Santa Cruz de Benfica, o aeroporto de Lisboa, o pavilhão de exposições da FIL e edifícios para a União Eléctrica Portuguesa. Projectou ainda um conjunto monumental para o alto do Parque Eduardo VII que incluía o Palácio da Cidade, edifício que não chegou a ser construído. Obteve o Prémio Municipal de Arquitectura de 1951 e o Prémio Valmor de 1962 com uma moradia no Restelo e o Prémio Diário de Notícias em 1960 pelo conjunto da sua obra.
Dinamizador do ICAT – Iniciativas Culturais Arte e Técnica, que publicava a revista Arquitectura, à sua volta reuniu um vasto número de jovens arquitectos.
Em 1948 Keil foi eleito Presidente do então Sindicato Nacional dos Arquitectos, cargo que manteve apenas por oito meses, por lhe ter sido negado o necessário sancionamento governamental. Mais tarde, o Sindicato organizou o Inquérito à Arquitectura Regional, do qual Keil do Amaral foi o principal mentor.
Também através da palavra escrita desenvolveu a sua acção renovadora. A Arquitectura e a Vida, Lisboa, uma Cidade em Transformação e numerosos artigos em revistas da especialidade, atestam a sua atenção aos problemas da sociedade em que estava inserido e o seu amor pela profissão.
Bibliografia:
ALMEIDA, Pedro Vieira de; FERNANDES, José Manuel – História da Arte em Portugal. Lisboa: Publicações Alfa, 1986, vol. 14
AMARAL, Francisco Keil – A Arquitectura e a Vida. Lisboa: Biblioteca Cosmos, 1942
Idem – Moderna arquitectura holandesa. Lisboa: Seara Nova, 1943
Idem – O problema da habitação. Porto: Livraria Latina, 1945
Idem – Lisboa, uma Cidade em Transformação. Lisboa: Europa-América, 1969
Idem – Histórias à margem de um século de história. Lisboa, Seara Nova, 1970
AMARAL, Francisco Pires Keil [et al.] – Keil Amaral arquitecto 1910-1975. Lisboa: Associação dos Arquitectos Portugueses, 1992
FRANÇA, José Augusto – A arte em Portugal no sec. XX. Lisboa: Bertrand, 1974
Lisboa, Câmara Municipal de – Keil do Amaral, o arquitecto e o humanista. Lisboa: Contemporânea Ed., 1999
PEDREIRINHO, José Manuel – Biografia dos Arquitectos. Porto: Afrontamento, 1995
SINDICATO NACIONAL DOS ARQUITECTOS – Arquitectura Popular em Portugal. 1ª ed., Lisboa: Ed. do S.N.A., 1961.
TOSTÕES, Ana – Keil do Amaral, arquitecto dos espaços verdes de Lisboa. Lisboa: Salamandra, 1992
PEREIRA, Nuno Teotónio. “Amaral, Francisco Keil do”. BARRETO, António; MÓNICA, Maria Filomena (coord.). Dicionário da História de Portugal, vol. 7. Porto: Livraria Figueirinhas, 1999-2000, p. 92
FRANCISCO CAETANO KEIL COELHO DO AMARAL (1910-1975). Arquiteto.