Arquitetura

Luís Barragan e Raul Lino

Luís Barragán

BARRAGAN E RAUL LINO:
DOIS CAMINHOS DIVERGENTES

O Público já deu o devido relevo a uma exposição de Arquitectura, a não perder, no Centro Cultural de Belém: a do arquitecto mexicano Luís Barragan, um dos mais notáveis e surpreendentes autores deste século, distinguido, tal como Álvaro Siza o foi, com o Prémio Pritzker.

Com esta exposição, organizada em Madrid pelo Ministério espanhol das Obras Públicas e agora em itinerância, revela-se em toda a sua plenitude o génio da arquitectura de Barragan, autor algo mítico, pois a sua obra não era facilmente acessível. Como alguns mestres do Movimento Moderno, nascido em 1902, Barragan teve uma primeira fase onde já se revelavam os seus talentos, mas que era ainda marcada pelos valores tradicionais. Foi numa viagem à Europa em 1932 que conheceu a Arquitectura Moderna na sua fase racionalista, e que passou a informar a sua obra.

O que é interessante notar é que os valores que se afirmavam na obra anterior adquiriram uma mais rica expressão após esta viragem. Esses valores eram os da simplicidade, da serenidade, da espiritualidade e da relação com a natureza. Ao transportar estes valores para a fase em que tinha descoberto o racionalismo, Barragan transcende-o, dando-lhe um cunho original profundamente radicado na tradição mexicana. A nitidez com que delimita os planos que configuram o espaço, a mestria no aproveitamento da luz e o uso abundante mas delicado da côr fazem da sua arquitectura um deslumbramento.

A sua obra é a melhor demonstração de que o Movimento Moderno poderia (como o fez efectivamente) abrir-se num leque muito rico e variado de expressões, que transcendiam largamente o estrito racionalismo e funcionalismo com que o alcunhavam e de que o acusavam os seus detractores. Luís Barragan soube reconhecer isso na hora própria, e daí a importância da sua obra.

Mas o título deste artigo justifica-se porque, ao contemplar a primeira fase da obra de Barragan, vêm-nos à lembrança certas obras de Raul Lino, com a plicação de elementos vernaculares e tradiciionais. Mas onde a analogia se torna mais evidente é quando lemos textos de um e de outro, traduzindo os valores que os preocupavam: mistério, recolhimento, serenidade, natureza, fazem abundante parte do vocabulário de ambos e espelham-se nas obras respectivas.

A obra de Raul Lino, arquitecto que deu corpo à campanha da “Casa Portuguesa”, foi uma personalidade polémica da primeira metade do século. A sua obra e maneira de ser e sentir foram recentemente objecto de um profundo estudo de Irene Ribeiro, editado pela Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto. E não falta o interesse das novas gerações pelos seus trabalhos. Com uma formação adquirida no romantismo germânico, era dotado de uma apurada sensibilidade e prezava em muito a relação com a natureza. A sua Casa do Cipreste, em S. Pedro de Sintra, é uma prima, em que a articulação dos espaços interiores, o intimismo e a relação com o exterior, sempre presentes nos seus projectos, adquirem um valor excepcional. Obra em que, é verdade, as características do organicismo estão mais patentes do que qualquer alusão ao modernismo racionalista. Ao mesmo tempo que criador, era um apaixonado pela divulgação das suas ideias e princípios, revelando dotes pedagógicos notáveis, através da publicação de uma numerosa bibliografia. O seu livro “Casas Portuguesas – alguns apontamentos sobre o arquitectar das casas simples” há muito esgotado, foi há pouco reeditado pelos Livros Cotovia. Apesar de vinte anos mais velho do que Barragan, teve como ele oportunidade de conhecer as novas ideias que revolucionaram a Arquitectura no princípio deste século. Mas ficou cego perante elas, não tendo sido capaz de lhes reconhecer os valores potenciais. Associando a ideia de racionalismo à de materialismo, rejeitou a Arquitectura Moderna e tornou-se num dos seus detractores mais ferozes. Tanto assim que em 1970 uma exposição retrospectiva da sua obra, realizada na Fundação Gulbenkian, suscitou uma carta de protesto assinada por 70 arquitectos contra o que consideravam o carácter apologético da mostra.

Nas suas últimas obras, Raul Lino liberta-se do vocabulário tradicionalista, cultivando os valores da simplicidade e do despojamento, mas não é capaz de assumir uma linguagem verdadeiramente moderna.

Foi este preconceito contra tudo o que era moderno que impediu Raul Lino de ser um grande arquitecto à altura da sua época. Nem o ambiente fechado e imobilista da sociedade portuguesa do tempo o pode justificar, já que houve em Portugal nos anos trinta uma notável vaga de modernismo na arquitectura. Mas a verdade é que o despertar de Barragan para os valores da modernidade se deu no contexto entusiástico da revolução mexicana de 31/32. Orozco, de quem se tornou amigo, e ainda Siqueiros e Rivera, foram os artistas que protagonizaram essa revolução no campo da arte.

Hoje, ao contemplarmos com admiração a obra do grande arquitecto mexicano, faz-nos doer que Lino não tenha feito um caminho semelhante e não tenha sido capaz de compreender os “novos tempos”, pois os valores que cultivou ao longo da vida seriam preciosos para uma nova fase, plena de singularidade, fazendo talvez dele um grande arquitecto da nossa época.

PEREIRA, Nuno Teotónio. “Barragan e Raul Lino: dois caminhos divergentes”. Público, 25 jul. 1995, p. 17.
Existe original dactilografado, 2 p.
Republicado em Tempos, Lugares, Pessoas. S.l.: Contemporânea e Jornal Público, 1996, pp. 104-106

LUÍS RAMIRO BARRÁGAN MORFIN (1902-1988). Arquiteto.
Barragán Foundation


LINO, RAUL (Lisboa, 21-11-1879 – Lisboa, 14-7-1974)

Raul Lino é uma das personalidades mais singulares e controversas no campo da Arquitectura durante o século vinte. Com uma formação académica incompleta, só obteve o título oficial de arquitecto em 1926, depois de ter elaborado numerosos projectos e desenvolvido uma notável obra doutrinária e pedagógica.

Na sua formação é marcante a influência germânica, tendo frequentado em Hannover em 1893 um curso com o arquitecto e historiador alemão Albrecht Haupt, que viria a ter grande influência na sua obra, autor de diversos estudos sobre a arquitectura portuguesa. Volta à Alemanha em 1911, onde permaneceu 6 meses.

Em 1918 publica A Nossa Casa – apontamentos sobre o bom gosto na construção das casas simples, obra que teve logo larga repercussão. Com este livro fornece elementos práticos e teóricos ao movimento da Casa Portuguesa, que lhe é anterior e que polariza as preocupações de intelectuais da época. Mais tarde desenvolve essa doutrina na obra Casas Portuguesas – alguns apontamentos sobre o arquitectar das casas simples, livro reeditado em 1992. Estas publicações, orientadas segundo um cunho pedagógico, são ilustradas com numerosos projectos do Autor e destinavam-se a mostrar exemplos de uma arquitectura inspirada nos valores vernáculos, mas despida de artificialismos. Trata-se sobretudo de moradias para a alta burguesia ou de casas de férias situadas em contacto com a natureza, a cuja relação Raul Lino atribuía a maior importância.

Entre os seus projectos contam-se a casa Monsalvat, no Estoril (1901), a Casa dos Patudos, para José Relvas, em Alpiarça (1904), as casas para a família Ribeiro Ferreira, em Lisboa e no Estoril (1906-1909), a casa da Quinta da Comenda, no Outão (1909), a Casa do Cipreste, para habitação do próprio autor, em S. Pedro de Sintra (1912), o Jardim-Escola João de Deus, à Estrela, em Lisboa (1914), a Casa dos Penedos, em Sintra (1920), o cinema Tivoli (1924), a casa de António Sérgio (1925), o Pavilhão do Brasil para a Exposição do Mundo Português (1940) e a sua própria residência, na Graça (1939). Também entregou propostas, que foram preteridas, para diversos concursos, entre os quais dois dos promovidos para a construção de um monumento ao infante D. Henrique, em Sagres.

A Casa do Cipreste é considerada uma obra-prima de arquitectura doméstica, de carácter altamente inovador, onde são patentes características da aquitectura orgânica. Aliás, Raul Lino dedica uma especial atenção ao espaço interior, onde são patentes as suas características de intimismo.

Raul Lino dedica-se entretanto também ao estudo da História da Arquitectura Portuguesa, sendo notável no seu livro sobre Os Paços Reais da Vila de Sintra, publicado em 1948; à ilustração de livros, nomeadamente de Afonso Lopes Vieira, de quem era amigo; à encenação de espectáculos de dança e de teatro e ao desenho de mobiliário. É notável o emprego que faz de painéis de azulejo em muitas das suas obras.

Em 1949 foi nomeado Director dos Monumentos Nacionais, onde exerceu uma actividade classificada por arquitectos da época como de censória em relação aos seus projectos. Efectivamente era um acérrimo crítico da arquitectura moderna. Mais tarde, em 1967, é designado para Presidente da Academia Nacional de Belas Artes. Ao longo de 20 anos publica artigos no Diário de Notícias sobre temas variados.

Não tendo tido influência directa na criação da chamada arquitectura do Estado Novo, que recorria à aplicação de elementos da arquitectura tradicional nas fachadas dos edifícios públicos, Raul Lino forneceu no entanto as bases doutrinais para essa orientação, da qual se manteve afastado nas suas obras, não tendo recebido encomendas do Estado.

Em 1970 a Fundação Calouste Gulbenkian organizou uma grande exposição retrospectiva da sua obra que foi uma revelação para aspectos menos conhecidos da sua actividade como arquitecto, doutrinador e homem de cultura. Essa exposição não deixou, porém, de levantar alguma polémica, expressa num abaixo-assinado de setenta arquitectos, que se manifestava contra o carácter consagratório da exposição, sonegando a acção de Raul Lino contra a arquitectura moderna.

Bibliografia:
ALMEIDA, Pedro Vieira de [et al.] – Raul Lino: exposição retrospectiva da sua obra. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1970
ALMEIDA, Pedro Vieira de; TOUSSAINT, Michel; FERNANDES, José Manuel – Raul Lino, 3 depoimentos em 1993. Lisboa: Associação de Estudantes da Faculdade de Arquitectura de Lisboa, 1993
FRANÇA, José Augusto – A arte em Portugal no século XX. Lisboa: Bertrand, 1974
LINO, Raul – A nossa casa: apontamentos sobre o bom-gosto na construção das casas simples. Lisboa: Atlântida, 1918
Idem – A casa portuguesa: exposição portuguesa de Sevilha. Lisboa: Imprensa Nacional, 1929
Idem – Auriverde Jornada: recordações de uma viagem ao Brasil. Lisboa: Valentim de Carvalho, 1937
Idem – Quatro palavras sobre urbanização. Lisboa: Valentim de Carvalho, 1945
Idem – Os paços reais da Vila de Sintra. Lisboa: Valentim de Carvalho, 1948
Idem – Arte, problema humano. Lisboa: Valentim de Carvalho, 1951
Idem – Casas portuguesas: alguns apontamentos sobre o arquitectar das casas simples. 2ª ed. Lisboa: Valentim de Carvalho, 1933; 3ª ed. Lisboa: Cotovia, 1992
PEDREIRINHO, José Manuel – Biografia dos Arquitectos. Porto: Afrontamento, 1995
RIBEIRO, Irene – Raul Lino, pensador nacionalista da arquitectura. Porto: Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, 1994

PEREIRA, Nuno Teotónio. “Lino, Raul”. BARRETO, António; MONICA, Maria Filomena (coord.). Dicionário da História de Portugal, vol. 8. Porto: Livraria Figueirinhas, 1999-2000, pp. 377-378


RAUL LINO: UMA PERSONALIDADE CONTROVERSA

A importância da obra de Raul Lino na Arquitectura portuguesa é hoje consensual. A sua apurada sensibilidade, a atenção dada ao contexto local, a formação humanista que recebeu da cultura germânica, estiveram na origem de obras de excepcional singularidade no panorama do primeiro quartel do século XX.

No entanto, foi uma personagem controversa, suscitando críticas e animosidades, de que o protesto por ocasião da exposição da sua obra na Fundação Gulbenkian foi o expoente mais notório. Isto, porque Raul Lino elaborou uma sistematização mitificada à volta da “Casa Portuguesa”, que era até contraditória com a postura que teve por vezes como projectista. E, ao mesmo tempo, embora sem a sua participação directa (honra lhe seja!) serviu de cobertura para a mascarada que foi a “arquitectura do Estado Novo”, ao combater ferozmente o Movimento Moderno, não só no plano doutrinário, mas também no desempenho de funções oficiais que lhe estavam cometidas.

Curiosamente, foi neste quadro que fiquei a dever-lhe alguma coisa quando estava a desenvolver o projecto do polémico edifício “Franjinhas”, na rua Braancamp. Fui assostir a uma conferência sua, com diapositivos, no Museu de Arte Antiga, na qual não poupou críticas à então rexcente sede da ONU em Nova Iorque. Sucedeu que uma dessas críticas referia que o paralelipípedo que constituía o corpo principal não tinha remate superior “parecendo por isso cortado à faca”. Fui para casa a cismar no assunto e, dando-lhe razão, resolvi esenhar uma enfática cornija no topo do meu projecto, coroando o edifício.

PEREIRA, Nuno Teotónio. “Raul Lino: uma personalidade controversa”. Arquitectura e Construção, fev. 2006.
Existe original impresso, 1 p.

RAUL LINO da SILVA (1879-1974). Arquiteto.