Ao ser convidado a falar sobre Manuel Tainha perante tão altos representantes do Estado, da Academia, da Profissão e da Sociedade, dois sentimentos contraditórios me tolhem. Por um lado, gostaria de ganhar distância, para poder olhar com objectividade o que tem sido a sua vida como profissional, como pedagogo e como cidadão. Mas, por outro, não posso colocar de lado tudo aquilo que, desde os estiradores da Escola, nos tem irmanado num companheirismo que já conta mais de seis décadas. Tentarei assim ser isento sem deixar de ser amigo.
Em primeiro lugar, quero dizer que muito me honra a função que para este acto me foi conferida. Subvertendo talvez o entendimento tradicional dessa função, digo apenas que nem cheguei antes, nem estou acima. Antes acontece que cada um de nós, juntamente com outros, construiu o seu caminho de acordo com princípios e valores que nos são comuns, mas seguindo as vocações próprias de cada qual.
Pelo que atrás referi, não posso deixar de evocar que, nascidos ambos no mesmo já longínquo ano de 1922, foi em 39 que iniciámos juntos o nosso percurso escolar, quando havia rebentado a 2ª guerra mundial. Anos mais tarde, fundámos, com outros colegas, o nosso primeiro atelier, que depois se desdobrou em dois nos locais onde ainda hoje trabalhamos. Ambos na mesma Rua da Alegria – nome que certamente nos tem ajudado a viver jovialmente a vida, no meio de gostos, desgostos e contragostos. E apesar de tudo – e repito, apesar de tudo – a retemperar a esperança em melhores dias, não só para a Arquitectura, mas sobretudo para o mundo dos humanos, quando a cooperação se sobrepuser à exploração, e para o planeta Terra, quando prevalecer a fruição sobre o saque.
Fundador, com seu irmão, o engenheiro Jovito Tainha, da revista “Binário”, em 1958, desde cedo Manuel Tainha nos tem oferecido o seu pensamento, que depois estendeu ao Ensino, em torno de um aspecto central do fazer Arquitectura, em nossos dias frequentemente esquecido: a relação dialéctica entre construção e forma arquitectónica, que sintetizou numa feliz expressão: a forma como construção, a construção como forma. Num outro registo, Manuel Tainha evoca frequentemente como indissociáveis, na Arquitectura, a sua prática, a sua ética, a sua poética. Como também nos vem lembrar que o fazer do arquitecto regula-se pelo princípio dos 3 P: o Programa, o Lugar ou Posição e o Procedimento. Estes exemplos ilustram bem como consegue identificar e nomear, no seio de uma totalidade, e por isso sem os separar, os factores presentes na nossa actividade profissional. Actividade a que ele dá um nome, convocando saberes ancestrais: ofício.
É por tudo isto e muito mais que, tentando agora ganhar alguma distância, sustento que Manuel Tainha tem sido entre os arquitectos um Mestre do Pensamento. Qualidade que já lhe valeu uma distinção além-fronteiras: o Prémio Jean Tschumi, conferido há dois anos pela União Internacional dos Arquitectos. Um pensamento que, por um lado, se expressa por uma escrita tão erudita e rigorosa como sensível, em que o fluxo das ideias não dispensa o uso da metáfora e o argumento ganha um sabor poético. Mas, por outro lado, se articula tão solidamente com as suas obras. Em Manuel Tainha, a teoria não precede nem determina a prática – uma e outra e alimentam e enriquecem mutuamente. Daí o seu singular e inestimável contributo para a Arquitectura e para a sua aprendizagem, pois que aquela, segundo sustenta, não se ensina. A Arquitectura, diz ele, aprende-se fazendo. Mas um Fazer que não dispensa o Pensar. É tudo isto – e muito ficou por dizer – que explica a solidez das suas obras e lhes assegura a perenidade, muito para além dos estilos, das modas e das tendências.
Para rematar, ia a dizer, muito convencionalmente que, em boa hora, a Universidade vem agora reconhecer a Manuel Tainha os méritos que lhe são devidos. Mas peço licença para me corrigir a mim próprio, sem que isso implique qualquer crítica a quem quer que seja: em boa-hora, não. Em bom vernáculo, digo antes: já não era sem tempo!
PEREIRA, Nuno Teotónio. [Sobre Manuel Tainha]. Original impresso, 11 fev. 2004, 2 p.
Alocução por ocasião do doutoramento Honoris Causa de Manuel Tainha pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, 11 mar. 2004
MANUEL MENDES TAINHA (1922-2012). Arquiteto.
– Entrevista na RTP ao arquiteto Manuel Graça Dias (1994)