Lisboa, 5 de Novembro de 1999
Meu caro Michel Toussaint
Li com uma invulgar emoção o artigo de Maria José Abrunhosa publicado no último número do jornal “Arquitectos”. Emoção provocada por dois factores: primeiro, pelo vigor, frontalidade e convicção das opiniões expressas; depois, por essa leitura ter ocorrido pouco tempo depois de ter sabido do seu falecimento.
O que aconteceu foi que li o texto como um testemunho/testamento de Maria José Abrunhosa, endereçado aos colegas pouco antes de nos deixar. E daqui me veio uma primeira interrogação, que é também uma crítica à forma como o “Jornal” tratou o texto. Quando foi escrito o artigo? E foi-o expressamente para o JA ou terá sido transcrito de outra publicação?
Outra crítica é que o texto faz alusão a uma quantidade apreciável de ilustrações que não aparecem publicadas. Como se pode assim amputar um testemunho da importância deste, ainda por cima depois da morte da autora? Que falta de respeito é esta? E como não há duas sem três, ainda uma outra: não era natural, direi mesmo indispensável, uma pequena nota biográfica, noticiando ao menos o seu falecimento (apesar de tão triste notícia ter sido publicada no Boletim mensal ad O.A.)?
Espero assim que as lacunas apontadas sejam colmatadas no próximo número. Mas não quero terminar sem algumas reflexões, até para não incorrer na acusação de silêncio e indiferença que Maria José nos lança no final do artigo, no jeito de desafio tão próprio da sua maneira de ser.
A pioneira e corajosa experiência profissional de Maria José Abrunhosa na cidade da Guarda durante 10 anos constitui um património de grande importância para a nossa cultura disciplinar. Ao longo do artigo fui deparando com opiniões contrárias às que tenho defendido ou praticado no exercício da profissão, parecendo-me algumas delas aquilo a que costumo chamar fundamentalismo conservacionista. Mas aquela experiência infunde-me o maior respeito e por isso, perante a contundência de alguns do seus argumentos, não pude evitar que me surgissem dúvidas e interrogações.
Neste sentido, uma contradição se me tornou clara: uma coisa são as opções que nós podemos fazer em projectos avulsos para aqui e ali, procurando sempre ver com atenção o que nos diz a envolvente e respeitar o carácter das pré-existências; outra, muito diferente, é ter de assumir em lugares públicosa responsabilidade de defender, contra ventos e marés e contra simples amadores e também profissionais encartados, a coerência de conjuntos edificados que nos foram legados em herança e que não devemos deixar destruir.
Esta contradição perpassa por todo o patético texto que Maria José Abrunhosa nos deixou. Trata-se porventura de uma contradição irredutível, como tantas na vida, inclusive na profissional. Mas que nos pode ajudar a sermos mais e mais exigentes no trabalho que produzimos.
PEREIRA, Nuno Teotónio. [Carta ao Jornal Arquitectos]. Lisboa: 5 nov. 1999, 1 p.
MARIA JOSÉ ABRUNHOSA DE CASTRO (1949-1999). Arquiteta.