UM ARQUITECTO DO SÉCULO
Para o jovem estudante de arquitectura nos anos da 2ª guerra mundial o destino do mundo jogava-se em torno de dois livros. Um deles, intitulado “Moderna Arquitectura Alemã”, era o catálogo da exposição que nos finais de 1941 foi apresentada em Lisboa por Albert Speer, o arquitecto predilecto de Hitler, mais tarde ministro do Armamento e condenado em Nuremberga a 20 anos de prisão, aos quais sobreviveu. A exposição mostrava maquetas e projectos dos edifícios grandiosos, hirtos e pesados, que seriam construídos após a vitória nazi para fazerem de Berlim a capital do mundo. E Cristino da Silva, professor da Escola de Belas Artes (sobre cuja obra está agora patente na Gulbenkian uma interessantíssima exposição), tentava convencer os seus renitentes alunos de que aquela ia ser a arquitectura do futuro.
O outro livro, com o título “Brazil Builds”, fora editado em 1943 pelo Museu de Arte Moderna de Nova York e mostrava, em belíssimas fotografias, a nova arquitectura que, de rompante, havia sido construída em São Paulo, no Rio, Belo Horizonte e noutros lugares da terra brasileira. Era uma surpreendente lufada de ar fresco e um clamor de esperança num mundo onde se acumulavam os escombros das cidades destruídas por massivos bombardeamentos aéreos.
Sabe-se como por cá os modelos nazis, apadrinhados pela ditadura de Salazar, ainda deixaram os seus vestígios, e como a nova arquitectura do Brasil serviu de bandeira no combate que as novas gerações travaram em prol do Movimento Moderno.
Entre os edifícios apresentados no livro do MOMA avultavam o novo Ministério da Educação no Rio de Janeiro e um centro cívico-cultural em Belo Horizonte que o dinâmico e progressista governador de Minas, Juscelino Kubitshek , fizera construir pela mão do jovem e promissor Oscar Niemeyer. E ambos voltaram a trabalhar juntos duas décadas mais tarde na construção de Brasília.
É aqui, na nova capital, construída em pleno agreste a partir do nada, que a Niemeyer se oferece a oportunidade de “concretizar” (construir em concreto, que é como no Brasil se chama o betão) a utopia partilhada com o já então Presidente Juscelino e com Lúcio Costa, o autor do “plano-piloto”. A utopia de uma cidade moderna (diríamos hoje para o século XXI), pois construída para o automóvel, racionalmente regrada e esteticamente proporcionada, coroada majestaticamente pela Praça dos Três Poderes, com a catedral à ilharga. Tudo projectos de Niemeyer.
É sabido como esta utopia de “ordem e progresso”, pensada como construção de um novo Brasil, se desfez com a proliferação desordenada de periferias espontâneas, como expressão inelutável da sociedade profundamente dualista como é ainda hoje a brasileira.
É nesta utopia que radica a força da arquitectura de Niemeyer, marcada por uma monumentalidade sem grandiloquência e por um afirmativo sentido cívico de que são também exemplos a igreja de S. Francisco em Belo Horizonte, o Memorial da América Latina em São Paulo e o Casino-Hotel no Funchal, que pousa serenamente na paisagem, marcando-a fortemente sem porém a agredir.
Está aqui também um dos traços peculiares de Niemeyer e que tem a ver com o anterior: uma relação com a Natureza de igual para igual, sem constrangimentos ou subalternidades, mas também sem atropelos ou agressões, aceitando de peito aberto o desafio que se coloca ao arquitecto de co-autor na construção de um mundo de utilidade para os humanos e de beleza.
A obra de Oscar Niemeyer afirma-se ao longo de sessenta anos, estendendo-se por continentes e latitudes e abarcando desde grandes programas de promoção pública a unidades de habitação, prédios de escritórios, igrejas, escolas, hotéis, museus e muito mais. Não é assim possível discorrer sobre ela numa simples página de revista. No entanto, e para além do que sucintamente se referiu, há um outro aspecto que não pode ser omitido. Trata-se da enorme plasticidade da linguagem arquitectónica, possível devido a uma perfeita simbiose formal entre um envólucro muito livre e imaginativo e o sistema estrutural que o suporta.
Esta característica constitui aliás um dos contributos originais da arquitectura brasileira para o Movimento Moderno, quando a generalidade da produção europeia se baseava em sistemas paralelipédicos (pavimento/parede/tecto) nos quais o binómio pilar-viga se encaixava facilmente. Pois a obra de Niemeyer, logo desde o início, se afirma com à-vontade numa maior e mais audaz liberdade de formas, utilizando superfícies curvas, vãos desmesurados e consolas arrojadas, contando para isso com o trabalho de um notabilíssimo corpo de engenheiros de estruturas que viabilizou tais ousadias.
O outro contributo brasileiro para a Arquitectura Moderna, que eclodiu na fria Europa de influência germânica entre as duas guerras mundiais, foi o rico vocabulário de adaptação aos trópicos, desenvolvendo com imaginação algumas ideias do franco-suisso Le Corbusier como os famosos brise-soleil. E também aqui Oscar Niemeyer inovou.
Quaisquer que sejam as distâncias que alguns possam colocar relativamente a uma ou outra das suas realizações, trata-se sem dúvida de um dos grandes construtores que fizeram a arquitectura deste século.
“Um Arquitecto do Século”. JL: Jornal de Letras, Artes e Ideias, 25 fev. 1998.
Existe original impresso, 2 p.
OSCAR RIBEIRO DE ALMEIDA NIEMEYER SOARES FILHO (1907- 2012). Arquiteto.