Nuno Teotónio Pereira
Outros mais eloquentemente que eu poderão lembrar-nos o grande arquitecto visionário, de espírito humanista e pés bem assentes na terra, que nunca desistiu de construir um mundo mais solidário, mais justo e em Paz. E que por isso resistiu corajosamente ao totalitarismo e todos congregou para o combaterem.
Para mim, o Nuno era já mito, herói antifascista e progressista da Capela do Rato, quando tive o ensejo de conviver de perto com ele e sua mulher, tendo-os por vizinhos, de verão, na nossa povoação face ao Cabo da Roca.
Encantava-me transpor os portões azuis e entrar naquele bucólico espaço, entrecortado pela cor das obras de arte da Irene, à luz coalhada do fim-da-tarde. E ter o prazer de poder alongar-me à conversa e aprender com o Nuno, sempre sequioso de discutir a Europa, Portugal, Timor-Leste, o Sahara Ocidental, África (tudo causas que ao longo da vida fui também partilhando com a Luísa, sua filha). E, claro, o nosso burgo de Colares/Sintra.
Importava-lhe Sintra, tinha ideias, diagnosticara problemas, matutara neles, propusera soluções: era o arquitecto indissociável do activista social, sempre empenhado em criar condições de habitação digna para todos, engenhoso para facilitar a mobilidade preservando o ambiente, cioso de fomentar a integração harmónica de uma população de diversa origem e transformar essa pluralidade em dinâmica cosmopolita, economicamente enriquecedora. Preocupado em reabilitar e projectar merecidamente o valioso património paisagístico e monumental de Sintra.
Foi por isso natural pedir-lhe que fosse meu mandatário, quando encabecei a lista do PS à Câmara de Sintra, em 2009. E foi uma grande honra, e responsabilidade, que ele tivesse aceitado. Passou a ser militante da campanha: apesar da idade, diversas vezes o vi entrar, com a Irene, e participar em debates públicos que organizamos em diversos pontos do concelho. E, claro, muitas foram as suas sugestões que adotamos como nossas propostas de campanha. Várias vingaram, prosseguidas pela Câmara quando passou a mãos socialistas. Outras, é uma questão de tempo. É o que penso, sempre que percorro a estrada de Sintra ao lado dos carris do eléctrico da Praia das Maçãs: o Nuno dizia que a ciclovia estava construída, era só alcatroar o espaço entre os carris…
Depois de ter perdido a vista, continuamos anos a conversar na casa da Atalaia, muitas vezes à lareira, até que a doença obrigou a que as estadias fossem cada vez mais espaçadas.
O que nunca esmoreceu foi a avidez do Nuno em saber do mundo, do bairro em redor ao mais longínquo país. E em poder contribuir para o moldar, partilhando a sua sabedoria e prodigalizando o seu conselho. Até partir, o Nuno nunca desperdiçou uma oportunidade de ser generoso e solidário.
Ana Gomes
14 de Janeiro de 2022