Peguei na autobiografia de Nuno Teotónio Pereira, intitulada “Do século XIX ao XX”, publicada no Jornal de Letras, edição de 19 de Janeiro a 1 de Fevereiro de 2005, guardada no catálogo da exposição que estivera no CCB, de 21 de Junho a 3 de Outubro de 2004: Arquitectura e Cidadania: Atelier de Nuno Teotónio Pereira, antes de iniciar este breve texto. Reli, uma vez mais, linhas que testemunhavam uma história pessoal já guardada há muito, quer por via de leituras várias quer através de alguns relatos pessoais verbalizados pelo próprio Nuno.
Não posso escrever este testemunho sem manifestar uma enorme saudade dos modos de estar e de ser, generosos e francos, com que Nuno Teotónio Pereira presenteava quem com ele tivera a sorte de se cruzar, não necessariamente em contexto profissional ou de trabalho, pois o Nuno transbordava sempre uma intrínseca sabedoria humana.
Apesar de ter sido nas lides da salvaguarda do património cultural, nomeadamente o industrial, que eu tive oportunidade de partilhar mais ideias, e de nessas lides termos entabulado uma amizade, por mim pautada por uma enorme admiração pela convicção e pelo entusiasmo com que defendia os seus pontos de vista ou ideais, não posso deixar de relatar, talvez, o último telefonema que o Nuno me fez, já então privado da sua visão. A minha tese de doutoramento, publicada no final de 2012, versou sobre o território de Lisboa, e procurou compreender o fenómeno da industrialização ocorrido a partir dos Anos 30 – 40 até final da década de sessenta, do século XX, em Portugal, através da produção arquitectónica e de alguns planos de urbanização, na qual analisara, por exemplo uma obra da sua autoria construída no eixo da Avenida Infante D. Henrique. Refiro-me à fábrica da firma Consórcio Laneiro, projecto de início dos Anos 50, dedicada ao tratamento e tecelagem da lã. Nesse telefonema, o Nuno, cheio de entusiasmo, comunicou-me que lhe tinham acabado de ler o meu livro e queria partilhar comigo as suas impressões. Não importa aqui referir as suas palavras abonatórias para com a leitura escutada, o que é de todo extraordinário é este cuidado com o outro, esta atenção e preocupação em partilhar opiniões, reforçar pontos de vista, valorizar esse esforço do conhecimento deixado para o futuro. Só posso sublimar, com este gesto do Nuno, esse imenso altruísmo que o caracterizava.
O perscrutar do território conformara, porventura, o seu modo inquieto de estar. O horizonte não tinha limites!
E foi longe da sua querida cidade de Lisboa que mais partilhamos preocupações sobre os caminhos que possibilitassem a preservação do património industrial e a sua requalificação através de planos de gestão que pudessem ter essa vocação de corrigir ou melhorar o território a habitar, nunca o desvirtuando do seu passado identitário.
Entre final de 1999 e final de 2001, coordenei pelo então, Instituto Português do Património Arquitectónico, o inventário do património industrial da Covilhã, projecto desenvolvido em parceria com a Universidade da Beira Interior, e que visara conhecer, identificar e mapear todas as fábricas da cidade, de modo a estabelecer medidas de salvaguarda eficazes, nomeadamente através da elaboração da Carta de Recomendações do Património Industrial da Covilhã, entregue em 2002 – há precisamente vinte anos – ao executivo camarário.
Lembro-me do frio que percorria as ruas da Covilhã, onde o sol assomava, junto à Ribeira da Goldra, quando a nossa equipa de inventário, que se encontrava a calcorrear as encostas e as ribeiras, a entrar e a sair de edifícios, a visitar o invisível, para muitos; encontrou o arquitecto Nuno Teotónio Pereira, que também se imiscuía, de novo, com o acidentado da urbe e a inquiria no âmbito da elaboração do Programa Polis. Logo ali, reunimos num café da redondeza. E foi essa abertura ao outro, a um olhar transdisciplinar, onde as disciplinas como a História, ou os valores do património cultural podem coabitar com a arquitectura, que o Nuno permitiu o arranque de um diálogo ímpar que nos conduziu a um trabalho que só pôde beneficiar ambos os planos em construção. Obrigada, Nuno Teotónio Pereira!
Deolinda Folgado
Janeiro de 2022