Poderia escrever sobre as conversas que tive com o Nuno, nas suas casas de Lisboa e de Marvão,
por altura do meu doutoramento, para melhor entender o MRAR –
Movimento de Renovação da Arte Religiosa (1952), onde militou,
ou a filosofia de restauro do Estado Novo e os arquitectos da sua geração.
Ou ainda sobre a sua participação no I Forum Marvão (2002) e no apoio que sempre me deu
no início da candidatura de Marvão a Património Mundial.
Mas as minhas vivências/memórias com o Nuno pertencem muito mais à esfera dos afectos
e ao ambiente político desses primeiros anos do pós 25 de Abril.
Entendo, por isso, dar aqui um testemunho mais pessoal e mais autêntico, porque escrito há 5 anos,
e não especificamente sobre o Nuno, mas onde ele aparece
com aquele inconfundível traço de carácter: a afabilidade e a coragem.
Hoje é dia 25 de Abril*
E já passaram 43 anos, mais do dobro dos que eu tinha naquele dia: 19. “Onde é que eu estava no 25 de Abril?”, perguntaria o Baptista Bastos. Já a trabalhar, a dar aulas, acabadinho de fazer o 7º ano, que naquela altura dava estatuto e habilitação mínima para a docência. Lembro-me de ser uma quinta-feira, cinzenta, a ameaçar chuva, e de me aparecerem alguns pais a levar os filhos para casa porque tinha havido uma revolução em Lisboa. Lá os fui sossegando, dizendo-lhes que sim, que tinha havido uma revolução mas que era das boas!
A notícia tinha-me sido dada pelo meu pai logo de manhã. Como sempre, era o primeiro a sair, para ir ao leite e ao pão, e trazia as novidades da rua, umas vezes boas, outras vezes más: “Olha que houve reboliço em Lisboa!” Levantei-me num pulo, fui ouvir as notícias e era verdade. Como haveria de escrever Sophia: Esta é a madrugada que eu esperava / O dia inicial inteiro e limpo / Onde emergimos da noite e do silêncio / E livres habitamos a substância do tempo.
A incredulidade ainda persistiu durante algumas horas. Lembro-me de me encontrar com o António Ventura e com gente do PC (o João Silva e o Raul Pinto), sempre bem informados, confirmando-se que a revolução estava a ser controlada por gente de confiança que não deixaria recuar o processo democrático. Na escola onde dava aulas, a Preparatória Cristóvão Falcão, de Portalegre, tinha sido ameaçado, meses antes, pelo director, na sequência de uma acção de protesto em que participara. Em pleno comício da ANP (farsa eleitoral de 1973), no Crisfal, provocámos confusão e fizemos uma manifestação espontânea (a única de que há memória antes do 25 de Abril) que desceu a Corredoura e subiu a Rua Direita e a do Comércio até que, barrados pela polícia, dispersámos, fugindo cada um para suas casas, muito apreensivos sobre o que se iria passar no dia seguinte. O comício estava cheio de Pides e quando a oradora apontou para a nossa fila dizendo que a juventude estava com o regime, levantámo-nos, batemos com as cadeiras, começámos a rasgar a propaganda e o corajoso José Carvalho gritou palavras de ordem levando-nos atrás! Foi um momento de arrepiar e só não fomos abafados pela polícia porque também eles estavam estupefactos com o que se estava a passar e não reagiram. Um golpe de surpresa! Logo pela manhã, quando cheguei à escola, fui chamado ao director, como já referi. Os nossos nomes já constavam nos locais de trabalho de cada um. Na lista que a polícia possuía não escapava um só; viemos a saber por um “infiltrado”. De nada nos valeu ter colocado o República na frente da cara quando os Pides circulavam, pelas cochias do Crisfal, fotografando a assistência ao comício do partido único. Aliás, todos os daquela lista já estavam referenciados como colaboradores (voluntários) do jornal A Rabeca, o órgão de comunicação onde a oposição escrevia… aquilo que eles deixavam passar.
Mas o que é que isto tem a ver com Marvão? É que desde 1966 que o Arq. Nuno Teotónio Pereira comprara aqui uma casa, tentara candidatar-se pela CDE em 69 (com António Mendes Aleixo, Fernando de Mascarenhas, Joaquim Vitorino Namorado, Feliciano Falcão e Raul Sousa Pinto) e, logo após o 25 de Abril, foi cabeça de lista por Portalegre pelo MES, onde eu também militava. Na sua casa de Marvão participei em várias reuniões, andámos ambos a colar cartazes, a fazer comícios, e o Nuno era para nós aquele irmão mais velho, tão afável quanto corajoso, que de alguma forma identificávamos com o 25 de Abril. “Onde é que ele estava no 25 de Abril?”. Preso, em Caxias!
A Isabel foi com a Sação levar um cravo ao Salgueiro Maia, a Castelo de Vide, e vieram de lá empolgadas com a cerimónia. São estas as pessoas que surgiram na minha memória neste soalheiro dia 25 de Abril de 2017, neste cantinho do Norte Alentejano: o Nuno Teotónio Pereira (ligado a Marvão) e o Salgueiro Maia (de Castelo de Vide). Contrastando, ontem, quando vi, em repetição, o programa televisivo Got Talent, ouvi uma jovem jurada comentar a prestação de um grupo rock, já entradote, que interpretara a canção de Zeca Afonso, “A morte saiu à rua”, dedicada ao pintor José Dias Coelho, assassinado pela Pide, em 1961, em plena rua: “valorizo a vossa prestação porque me diverti”. Sem comentários!
* Páginas de um livro inédito, de escritos sobre Marvão, que vou escrevendo à medida que algum acontecimento o motive, ao jeito de um “diário” (25 de Abril de 2017).
Domingos Bucho
Fevereiro de 2022