Mal tive conhecimento de que este ano seria celebrado o centenário do nascimento de Nuno Teotónio Pereira, senti a alegria de poder participar.
Contudo, vicissitudes várias impediram-me de o fazer como desejava e por isso faço-o agora recorrendo a papéis que fui escrevendo e quando o Nuno na minha vida assumiu um papel protagonizante – no Inquérito à Arquitectura Regional Portuguesa e no episódio da expulsão da população do Casal Ventoso.
O Inquérito
Não sei como, vim a saber que o SNA pretendia levar a efeito um inquérito sobre a arquitetura regional portuguesa e para isso lançava um convite de colaboração a todos os seus associados.
Eu ainda não tinha acabado o estágio, faltava-me fazer as provas do Concurso para a Obtenção do Diploma de Arquiteto, mas a iniciativa entusiasmou-me tanto que tentei inscrever-me.
Não fui aceite à primeira, mas quis o destino que fosse chamado algumas semanas depois.
Para um noviço da Arquitetura a possibilidade de participar num trabalho como imaginava que seria o Inquérito era o abrir das portas da felicidade e da alegria:
permitia-me conhecer novas terras e novas gentes; conviver com os elementos mais ativos da classe; integrar-me na vida associativa, o que, entendi rapidamente, significava possibilidade de participação cívica e cultural alargada
e, acima de tudo, ter a sorte de estar chegado aquela geração que, após o Congresso de 1948, e em contexto adverso lançou entre nós, com facetas específicas para o caso português, os princípios do Movimento Moderno e praticou com empenho uma arquitetura para todos.
Foi carrejando tudo isto que em Setembro de 1955 me dirigi para a rua da Alegria ao encontro de Nuno Teotónio Pereira para me engajar no Inquérito.
Já o conhecia por ser sócio apoiante de uma cooperativa de habitação de que ele era figura referencial e que, para deslumbramento de muitos alunos de arquitetura, tinha construído em tamanho natural no salão da Sociedade Nacional de Belas Artes, o modelo de um fogo para que as pessoas o pudessem ver e apreciar.
Teotónio Pereira numa primeira impressão, aparentava ser, pelo olhar, pela voz e pela postura uma pessoa de rigor, distante e fria…
foi por isso que ao ser entrevistado, antes de o conhecer melhor, me senti quase assustado:
… sabe que vai substituir um colega que teve um desastre, caiu da lambreta, partiu um braço e não pode continuar? sim sei, o Galhoz, pode começar a trabalhar já? sim… vai ter que estar muitos dias fora… eu sei, gosta de fotografia? que máquina tem? uma Zeiss Ikon Contina, 35 milímetros… vai usar uma Roleiflex 6×6, o Bartolomeu Costa Cabral emprestou uma ao Sindicato, tem de ser usado esse formato, interessa-se pela arquitetura popular? o que é que tem feito? … costumo passar as férias na Beira Baixa, em casa dos meus avós e tenho fotografado algumas aldeias em torno de Proença-a-Nova…
A partir daí nasceu entre nós uma grande amizade e, pela minha parte, uma crescente admiração.
Fomos eu, a Olga Quintanilha, o Manuel Correia Fernandes e o Teotónio Pereira, já então o Sindicato se transformara em Associação Pública, a caminho de Sevilha, para uma reunião preparatória da criação de uma organização representativa dos arquitetos da Europa
passada a fronteira, já na charneca andaluza, diz o Nuno:
… a última vez que aqui passei ia numa camioneta de carga levar abastecimentos para os revoltosos no princípio da guerra de Espanha…
e disse isto sem angústia, sem sombra de pecado, sem renegar o passado…
alguns anos depois de o fazer foi preso e torturado pela PIDE por passar no seu 4L opositores do regime para o outro lado da fronteira a caminho da liberdade
esteve na capela do Rato, em vigília pela Paz e em protesto contra a guerra era ele que recolhia entre nós o dinheiro destinado ao auxílio a presos políticos, e no dia 27 de abril de 1974 foi um dos que passou os portões de Caxias, libertado
e tudo isto sem alarde e conscientemente.
Foi momento de grande emoção para mim quando, algumas dezenas de anos depois, a Irene me disse que o Nuno gostava que fosse eu a escrever o prefácio da sua obra Lisboa, Temas e Polémicas que ele havia escrito, em tempos de censura e que a Câmara Municipal de Lisboa editou em 2007
foi como se um mestre pedisse a um discípulo ou, mais figurativamente, que um pai dissesse a um filho para o fazer…
A amizade que me uniu a Nuno Teotónio Pereira foi um crescendo constante desde que o conheci até à sua morte
não assisti propositadamente ao seu enterro:
o meu pai dizia que era nos enterros que as pessoas morriam e por isso nunca ia ao funeral de um amigo porque queria ficar com a lembrança intacta da última vez que o vira ou que com ele conversara e assim ficava com a esperança que haveria de o reencontrar a uma esquina ou atender um telefonema seu…
o Nuno é daqueles de que espero constantemente um telefonema ou que ele, já cego, me pegue na mão e pergunte:
… quem és tu?
… sou o Chico.
ah… o Chico, grande amigo.
Após a entrevista com Teotónio Pereira fui rapidamente posto ao corrente, em reuniões no ateliê dele e na sede do Sindicato, dos objetivos do inquérito, do método e do guião de pesquisa adotado.
Não seria politicamente desinteressado e unicamente a favor da cultura o subsídio concedido pelo governo para que o Inquérito se concretizasse:
Intenção oculta seria arrumar de vez a polémica da “Casa Portuguesa” e o confronto que existia entre modernos e conservadores, quase coincidente entre os “da oposição” e os “da situação” e por fim impor um “estilo nacional” a ser aplicado em todos os edifícios públicos, fossem eles Palácios da Justiça, escolas, liceus, alfândegas e cadeias, edifícios dos correios, quartéis, hospitais e por aí adiante até às mais modestas Casas do Povo, conforme o que se estava a passar, com variantes, por todas as ditaduras da Europa:
na Espanha de Franco, na Itália de Mussolini, na Alemanha de Hitler ou na União Soviética de Estaline.
Mas foram completamente diferentes os resultados do Inquérito em relação ao que o governo pretendia pois o demonstrado foi que não havia um estilo nacional, mas sim uma coerente relação entre as gentes e os sítios onde viviam e trabalhavam.
As dúvidas que me poderiam ter assaltado de “estar a colaborar com o regime”, presente na mente de muitos que tivessem atingido a idade do discernimento no pós-guerra foi-se desvanecendo quando vim a conhecer todos os que na altura faziam parte da Direção do Sindicato e de todos os intervenientes no Inquérito, pois cerca de 20 anos antes do 25 de Abril não foi necessária uma revolução para entender a militância política de cada um.
Vindo eu de uma família laica e republicana lá me encontrei quotidianamente no sindicato entre católicos progressistas, socialistas e comunistas, não havendo nenhum que fosse política ou culturalmente neutro
tudo isto contribuindo para o meu total deslumbramento
um mundo novo para o qual eu fui conduzido por todos eles e no princípio e para sempre por Teotónio Pereira.
Gostaria de complementar este depoimento com palavras e um desenho.
As barracas do Casal Ventoso
Uma outra vez o Nuno surgiu-me com toda a sua dimensão cívica:
foi quando o ditador, ao visitar as obras da ponte sobre o Tejo, impos que todas as barracas do Casal Ventoso saíssem dali…
E foi a propósito disso que o Nuno escreveu num panfleto clandestino, distribuído no local em 1966:
“As famílias (…) são informadas pela polícia, com dois ou três dias de antecedência, a proceder elas próprias à demolição da sua barraca – o que fazem pois de outro modo será demolida sem qualquer cuidado pelo pessoal camarário, o que teria o inconveniente, dado que os materiais resultantes da demolição constituíam elementos indispensáveis e por vezes únicos de que os moradores poderão dispor para a reconstrução (das suas barracas) na Musgueira.”
Francisco da Silva Dias
Janeiro de 2022
CONTEÚDOS RELACIONADOS
– Sindicato Nacional dos Arquitectos – Associação dos Arquitectos Portugueses – Ordem dos Arquitetos