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José Alberto Franco

NUNO TEOTÓNIO PEREIRA: UM TESTEMUNHO SOBRE O SEU CONTRIBUTO PARA A TRANSFORMAÇÃO DA IGREJA CATÓLICA PORTUGUESA NOS FINAIS DOS ANOS 1960’s

Com o sentimento de enorme gratidão pelo acolhimento e pela generosidade que o Nuno Teotónio Pereira sempre manifestou em relação aos jovens que (como eu) se iam definindo em oposição ao status quo, este é um testemunho pessoal sobre a sua militância na transformação da Igreja Católica portuguesa subsequente ao Concílio Vaticano II.

MOVIMENTAÇÕES RELACIONADAS COM O Pe. JOSÉ FELICIDADE ALVES E COM OS GRUPOS GEDOC (ESTUDOS E INTERCÂMBIO DE DOCUMENTOS, INFORMAÇÕES E EXPERIÊNCIAS)

Desde abril de 1968, iniciou-se na paróquia lisboeta dos Jerónimos (Stª Maria de Belém e S. Francisco Xavier) uma onda de solidariedade com o seu prior, o Padre José Felicidade Alves, que manifestou formalmente ao Conselho Paroquial um conjunto de preocupações de natureza pastoral e social que questionavam, designadamente, as orientações definidas pelo episcopado português em relação à guerra de África.

Esse processo evoluiu rapidamente para uma confrontação política com as autoridades do regime, e degenerou na demarcação do Patriarca de Lisboa que, após diversas vicissitudes, instaurou um processo canónico e chegou a decretar a suspensão a divinis do pároco de Belém.

O Nuno Teotónio Pereira destacou-se num vasto movimento de leigos e de padres de Lisboa e do resto do país, em apoio ao Pe. Felicidade e às suas posições doutrinárias, o qual se concretizou, entre outras iniciativas, numa “Carta aberta aos bispos do Patriarcado”, com data de 29/6/68, subscrita por 371 cristãos da diocese, sendo muitos deles figuras bastante conhecidas nos meios culturais e profissionais da capital.

Proclamava-se nessa carta aberta que “renovar a vida de uma comunidade cristã não é unicamente, nem essencialmente, reformar a liturgia” e apelava-se a que os bispos “tomassem consciência de que, em muitos pontos, essa mudança radical já se deu em nós”.

Mais à frente, a carta aberta questionava: “Quando veremos os bispos portugueses pronunciarem-se sem ambiguidade sobre a violação de direitos fundamentais da pessoa humana, que ocorre sob os nossos olhos e que não pode ser desconhecida? Quando os veremos exigir (ou pelo menos defender aqueles que são perseguidos por o fazerem) o respeito pelo direito de liberdade de expressão de pensamento, pelo direito a uma informação objetiva, pelo direito de reunião e associação pacíficas, pelo direito de inviolabilidade de domicílio e de sigilo de correspondência, pelo direito a não ser torturado pela polícia, a não ser julgado sem um mínimo de garantias de imparcialidade e sem possibilidade efetiva de defesa, pelo direito a não ser exilado nem impedido de entrar no seu país, pelo direito a tomar parte ativa na formação das decisões orientadoras da política do seu país?”

Neste contexto de inconformismo e de alinhamento objetivo com as reivindicações das oposições ao regime, e uma vez consumada a destituição do Pe. Felicidade da sua paróquia, bem como o afastamento de diversos outros responsáveis da diocese que se tinham solidarizado com ele, nasceram no início de 1969 os GEDOC – grupos de estudos e intercâmbio de documentos, informações e experiências.

Foi editado em fevereiro de 1969 o primeiro número dos Cadernos Gedoc (64 páginas policopiadas), a que se seguiram mais onze números até julho de 1970 (o n.º2 também policopiado, os n.ºs 3 a 10 impressos em tipografia, e os n.ºs 11 e 12 novamente policopiados – quando a repressão começou a apertar…). Aliás, devido à intensificação da perseguição policial e à fragilidade da rede de distribuição, uma boa parte da edição do n.º 12 não chegou sequer a ser difundida.

Mais uma vez, o Nuno Teotónio Pereira teve um papel relevante em todo este processo. Pelo apoio pessoal às iniciativas que iam sendo tomadas, pelas propostas de ação que formulou nos sucessivos encontros de aderentes dos Gedoc, e finalmente pela liderança efetiva da Equipa Coordenadora do movimento, que reuniu semanalmente em casa do Nuno durante mais de um ano (de que também fiz parte).

É certo que a posição de completo bloqueio assumida pela hierarquia católica, uma acentuada politização dos elementos mais ativos do movimento e, em particular, uma intensa repressão que a polícia do regime passou a desencadear, conduziram à parcial desmobilização dos aderentes. Mas nunca lhes faltaram, mesmo nos momentos mais difíceis, o estímulo e as palavras serenas de encorajamento do Nuno.

José Alberto Franco
Janeiro de 2022


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É preso ela segunda vez, no âmbito do processo dos Cadernos GEDOC