[este texto recupera partes de outro que escrevi e foi publicado em tempos… num discurso aberto e descomprometido, tal como o Nuno Teotónio Pereira sempre me ensinou e sempre me recebeu]
Um dia conheci o Nuno.
Um dia, há alguns, muitos anos atrás… agora não me lembro ao certo, mas também não interessa!
Liguei-lhe para a Rua da Alegria, assim, a medo, de voz trémula, de quem precisava mesmo da sua ajuda para prosseguir com um trabalho académico.
Atendeu a simpática secretária que me passou a chamada de imediato, sem perguntar ao que ia!
– Ah! Olá!…Bom dia!
Baralhada pela rapidez do seu “sim” grave e prolongado, lá expliquei o que pretendia! Acho que sorriu, eu percebi que sim, e em menos de 1mn marcamos o nosso encontro.
Dois dias depois lá estava com o meu novo gravador de voz com minicassetes… um bloco, uma caneta e uma cabeça cheia de perguntas.
Fui de Metro. Aquela rua era e é, terrível para estacionar! Cheguei adiantada: 3 quartos de hora, tal era o pânico do atraso.
Estava um dia bonito e colorido de primavera. Cheirava bem na Praça da Alegria. Passeei algum tempo, de facto! [Re]visitei o Parque Mayer imaginando vidas e movimentos de outros tempos, aqueles que, na verdade, queria conhecer na conversa que tanto ansiava. Na minha geração apenas era visitado na hora de saltar o muro para o Hot Clube!
Chegada a hora, subi a íngreme rua, parei à porta e toquei, agora sim, sem hesitação.
Subi vários lanços de uma escada repleta de histórias, torta e empenada de tantas vidas que acompanhou, gasta pelo tempo que (eu) queria conhecer.
Toquei e, de imediato, ouvi passos no corredor. Lá estava a simpática senhora que me encaminhou para a sala do Nuno.
– O arquiteto Nuno deve estar mesmo a chegar – disse!
Fiquei só!
Guardo na memória a primeira imagem da sua sala e digo que para além de livros expostos, consigo montar uma rede de relação entre objetos.
Mesas, cadeiras, livros, muitos livros, um velho telefone que toca, a luz difusa que entrava por duas janelas a Norte, o barulho dos carros que apitavam lá fora, 3 pisos abaixo, na inclinada Rua da Alegria, … coisas encostadas às paredes, coisas por baixo das mesas, coisas em cima das mesas. Um cheiro frio a tempo, e uma experiência partilhada por relações com outros que se revelava nesta imagem.
Uma sala cheia, muito mais cheia de vida que as escadas que acabara de subir.
Não tardou a chegar, o arquiteto Nuno. Interrompeu a minha viagem. E sorriu, tal qual o tinha feito ao telefone.
Percebi de imediato que tinha feito um amigo. Era cúmplice da minha viagem, não havia volta a dar. Falou a tarde inteira.
O meu gravador já não dava para mais, … passei ao caderno!… Letra corrida e embaraçada. Queria reter cada palavra, mas a minha mão não acompanhava o seu dedicado e entusiasmado discurso.
Falou-me serenamente do que eu pensava que conhecia, na perspetiva de quem usa a obra, de quem a habita, do utente… e sempre no plural, sempre associando outros, importantes para o seu percurso, indispensáveis na sua obra.
Mostrou-me os seus projetos, apresentou-me escritos seus e de outros, a sua viagem a Itália com Nuno Portas, as suas experiências, os Congressos, o Inquérito à Arquitetura, os preciosos recortes de jornal, a experiência da Casa Protótipo, outras realidades, outros arquitetos. Mas mais do que tudo, confrontou-me não com a história da arquitetura, mas com o real sentido de um país em mudança… com a força de uma geração, que aos poucos fui conhecendo.
Deu-me tudo o que achava que era precioso para o meu trabalho e eu, com medo de estragar, de perder… guardei com a garantia que voltava de imediato, assim que conseguisse copiar tanta informação.
Mais do que as cópias, interessava-me o regresso. A oportunidade de poder continuar aquela história que já não cabia na minha memória e ainda agora tinha começado.
Na verdade, cedo lhe conheci a obra da cidade, fruto de circunstâncias de quem a percorria diariamente, e de quem teve a sorte de conviver com ela diretamente através de amigos: os degraus das galerias do Bloco das Águas e uma guitarra; o último piso do Franjinhas, este, já sem as curiosas palas de sombreamento, mas com uma vista surpreendente… até a Igreja do Sagrado Coração de Jesus servia para cortar caminho. Obras que visitei, habitei e explorei ainda com a curiosidade de adolescente.
No percurso académico, confrontei-me com outras. Essas, distantes da minha jornada diária… e que se tornou inevitável ir ao seu encontro. Umas conhecendo na totalidade, outras, espreitando apenas entre grades, na esperança de um convite para entrar.
Fomos mantendo contacto. Eu, sempre solicitando, ele, sempre oferecendo a sua perspetiva pessoal, a sua motivação, a experiência de uma vida.
De um trabalho passei a outro! Um doutoramento, exigente, e a sua presença continuava a ser essencial.
Mas desta vez já estava em casa. Havia cegado.
Agora já o tratava por Nuno. A D. Irene, sempre foi Dona. Uma amável senhora que me abria a porta também a sorrir, enquanto o seu pequeno cachorro trepava por mim acima. A sua casa era outro mundo! Com uma luz maravilhosa.
(…)
Falei com ele, pela última vez, há pouco mais de 6 anos. Parece uma eternidade. Disse-lhe que ia defender a minha tese de doutoramento e que adorava que estivesse! Sorriu… Não dava! O Porto é longe, a saúde não permitia!
Sabia que um dia ia partir. Mas nunca estamos preparados.
Foi uma vida de dedicação a causas! E como se esforçou. E a tantos ensinou!
Hoje, os degraus do Bloco das Águas dizem-me muito mais coisas e mostro-os anualmente aos meus alunos, mas ainda sinto o cheiro do calor do fim de tarde quando saia do Pedro Nunes e ia para casa da Madalena. A igreja do Sagrado Coração com o seu percurso entre quarteirões, serviu para construir cidade e abrir a igreja à sociedade, enquanto eu corria cortando caminho…
Sinto-me Grata por me ter cruzado com a sua vida. Não foi indiferente para a construção da minha.
Agradeço-lhe constantemente o encorajamento e a sua generosidade para com a vida e para com todos nós, utentes [atentos]…
Maria Tavares
Fevereiro de 2022