Atividade política Igreja católica

Maria Vitória Vaz Pato

Em 1963 regressava a Portugal e por razões profissionais vim viver para Lisboa. Tinha regressado de Paris onde estudara durante quatro anos e aí fui aprofundando a minha formação política. Figuras como Luther King tornavam-se para mim exemplos de uma luta política sem violência. Estava determinada ao chegar a Lisboa em comprometer-me numa luta política e procurei conhecer um grupo onde pudesse participar, pois não desejava integrar-me num partido político clandestino.

Foi então que cheguei ao contacto de Nuno Teotónio Pereira-NTP, cuja personalidade era bem conhecida. Sabendo dos seus compromissos políticos, fiz-lhe saber da minha disponibilidade em colaborar em acções sobretudo de cariz não violento. E informei-o da minha situação particular rara à época: vivia sozinha, num pequeno apartamento que alugara na zona de Benfica.

Assim, uma noite em que estava numa reunião com amigos, entre os quais alguns da família do então Padre António Jorge Martins, este vem visitar-me. Não ficou no convívio mas apenas quis ver a casa. Tratava-se da avaliação das condições do meu apartamento para o trabalho que me ia ser pedido.

Considerando o NTP fundamental para instaurar a democracia em Portugal o conhecimento da verdadeira informação sobre os problemas sociais e políticos do nosso país e do mundo, concebeu um projecto de divulgação de Informação justa sob a forma de um pequeno jornal clandestino a que deu o nome de DIREITO À INFORMAÇÃO. Resumo em seguida as principais tarefas conduzidas na minha casa.

Dado que tudo era passado na maior clandestinidade, eu começava por receber por código, ao telefone, para o meu emprego, informações relativas ao trabalho. Por exemplo, no caso da chegada de uma pessoa que viria trazer uma mala com as folhas para compor o jornal, o código que o NTP usava poderia ser deste tipo: “Estás em casa no sábado? É que um amigo meu de passagem vai levar-te uma caixa de bolinhos para o teu lanche”. Logo eu entendia que alguém iria trazer pacotes com as folhas impressas que iriam constituir o jornal.

Depois devia organizar-se a dobragem e compilação correta da paginação. Os 3.000 a 4.000 exemplares constituídos por uma dúzia de folhas deveriam ser convenientemente dobrados e empacotados para serem distribuídos e entregues a pessoas que os viriam buscar para os distribuir pelo país.

Foram tempos de grande camaradagem e de uma amizade límpida e generosa. Embora fosse fatigante e corrêssemos riscos ao fazer aquele trabalho, eram noitadas de convívio fraterno e alegre. Ouvíamos repetidamente discos do Zeca Afonso que tínhamos conseguido obter num livraria conhecida. E íamos petiscando alguma comida comprada na loja da esquina.

Havia ainda o trabalho de preparar pacotes para distribuição em diversos pontos do país. Para dar um exemplo: transportei uma vez para o Porto, numa véspera de Natal onde ia passar com os meus pais a festividade, uma pesada mala com pacotes que me foram entregues na Estação de Santa Apolónia por uma pessoa que me foi descrita como iria vestida, mas cujo nome eu não conhecia. Um funcionário do comboio, vendo a dificuldade que eu tinha em erguer a mala para a colocar no local da bagagem sobre o assento, prontificou-se a ajudar-me. Mas perante o peso, disse: “Mas que mala tão pesada, o que leva aí a senhora?”. Felizmente, hábitos de representação no teatro universitário que frequentei deram-me facilidade para a rápida invenção: “São tantos os parentes e sobrinhos que tenho no Porto que nunca sei como escolher presentes de Natal e desta vez só comprei livros e enciclopédias”. Depois eu deveria entregar a encomenda a uma outra pessoa que me esperaria na estação de Vila Nova de Gaia, antes de chegar à estação do Porto onde o meu pai gentilmente me iria esperar.

A impressão do “Direito à Informação” e de outros documentos constituía um arriscado e perigoso processo e nos últimos tempos antes do 25 de Abril as impressões de documentos clandestinos passaram a ser efetuadas por vezes no estrangeiro, graças às Comisiones Obreras de Espanha e ao apoio dado pelo grande democrata italiano Sereno Regis – militante que tinha trabalhado na resistência durante a Grande Guerra de 1939-45 e se disponibilizou para vir a Lisboa para organizar a colaboração a dar aos trabalhos do NTP. Assim, o documento que relatava os “Problemas da Independência das colónias e a forma violenta como a guerra estava a ser conduzida”, traduzido em diferentes línguas, que foi distribuído aos cardeais que participavam no Concílio Vaticano II, aconteceu graças ao trabalho dedicado e generoso de Sereno Regis. Este encarregou-se da impressão, ele mesmo se deslocou no seu pequeno carro de Turim, onde vivia, até Roma, para levar os exemplares do documento e, através de um seu amigo no Concílio, conseguiu fazer a distribuição. Hoje em Turim existe o Centro Studi Sereno Regisricerca, educazione, azione per la pace, l’ambiente, la sostenibilità.

Recordo também que quando o Papa Paulo VI foi à Índia em 1963, o governo de Salazar tudo tinha feito para impedir esta viagem que ofendia Portugal, pois havia um conflito muito grave entre a Índia e Portugal. A Índia tinha invadido Goa dois anos antes, em 1961. E, apesar de todas as tentativas do Papa de procurar mostrar que não se tratava de um gesto hostil nem a Portugal, nem ao catolicismo português, acentuando sempre que era uma viagem religiosa e não política, provocou uma forte reacção da parte de Salazar e do regime. Deste modo, sabendo-se que todas as notícias referentes à ida do Papa e que o discurso que o Papa iria fazer não seriam transmitidos pelos meios de comunicação em Portugal, um grupo de católicos progressistas entendeu que estas notícias deveriam ser cá distribuídas. Esta missão foi confiada a Eduardo Veloso e outros companheiros que se disponibilizaram para ir de carro a Espanha, onde recolheram durante o tempo de visita do Papa à Índia as notícias e os discursos do Papa, traduzindo-os para português, enquanto as Comissões Obreras os imprimiam. Assim chegaram a Portugal estas informações da visita do Papa, que foram sendo distribuídas no adro de várias igrejas de Lisboa no fim das missas dominicais.

Maria Vitória Barreiros Vaz Pato
Janeiro de 2022


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É co-fundador da publicação clandestina Direito à Informação
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