Uma história das entrevistas de “Portugal sem Salazar”
Por ocasião das “eleições de 1973”, as últimas do regime salazarista, preparei um livro de entrevistas com personalidades políticas oposicionistas como Mário Soares, João Bénard da Costa, Salgado Zenha, Jorge Sampaio, Ernesto Melo Antunes, Manuel de Lucena, Eduardo Lourenço, José Medeiros Ferreira, Nuno Teotónio Pereira e outros. Todas estas entrevistas foram gravadas.
Não foi possível publicar o livro na íntegra, dada a ausência de liberdade de expressão. A entrevista com Mário Soares saiu no Brasil, a de Eduardo Lourenço, já depois do 25 de Abril, na editora Cosmos. Outras ficaram em rascunho, como a de Ernesto Melo Antunes, que foi descoberta no seu espólio, pela historiadora Maria Inácia Rezola. No ano de 1973, aproveitando alguma tolerância das encenações eleitorais, só foi possível publicar um pequeno opúsculo, algo desproporcionado à grandeza do título “Portugal sem Salazar”. Saiu na (então) recém-criada Assírio e Alvim, numa coleção chamada Mínima e constava de uma longa entrevista com Manuel de Lucena, então exilado em Paris e de uma mesa-redonda (cortada pela censura no República), efetuada em Genebra, com a participação de António Barreto, Eurico de Figueiredo, José Medeiros Ferreira e Valentim Alexandre. Agora foi encontrada, no arquivo pessoal de Nuno Teotónio Pereira, a transcrição revista da entrevista que lhe fiz em julho de 1971.*
Já em fevereiro de 1974, quatro meses após a publicação do livro, fui convocado para um interrogatório pela polícia política (PIDE), previsto para as instalações da Rua António Maria Cardoso, em Lisboa, mas logo transferido para Caxias, onde se realizou em duas fases, com uma semana de intervalo.
Naquela altura, por ordens do Presidente do Conselho de Ministros, estes interrogatórios podiam ser acompanhados por advogados. Pedi ajuda a Herculano Pires, advogado e oposicionista de Almada e membro do Partido Socialista. O inspetor Pinto Galante, que se apresentou como licenciado em Filosofia na Faculdade de Letras de Coimbra, fez incidir o interrogatório em dois pontos principais: pediu-me que lhe fornecesse o endereço em Genebra dos entrevistados. Recusei-me a fazê-lo, argumentando que não estava autorizado pelos próprios e, além disso, estavam enunciadas no livro as Universidades que frequentavam; em segundo lugar interpelou-me sobre uma frase de Manuel de Lucena que, no entender da Pide, poderia ser entendida como apelo à luta armada contra o regime, o que não era de todo o caso.
Do primeira para a segunda inquirição o clima mudou e foi mais cordato, talvez porque entretanto o editor José Ribeiro conversou no Chiado com António Alçada Baptista que tinha, nessa época, relações cordiais com Marcelo Caetano, com quem publicara pouco antes um livro de entrevistas. O Presidente do Conselho de Ministros ter-lhe-à dito que “Portugal sem Salazar” fora o único livro com interesse publicado do lado da oposição nas eleições de 1973. Mais: autorizou-o a citar na PIDE essa sua opinião.
Não invoquei, no interrogatório de Caxias, a opinião do Presidente do Conselho de Ministros, mas julgo que o editor o terá feito, até porque o ambiente, nesta segunda entrevista, era mais ameno. O inspetor disse ao autor e ao seu advogado que, apesar de alguns aspetos, subversivos, o livro tinha interesse “para nós” (nós, os da “situação”, entenda-se).
Próximo do período de campanha, o livro foi posto à venda e pouco depois apreendido pela Direção-Geral de Informação, mas o processo instaurado contra o seu autor acabou por ser arquivado, nas vésperas do Golpe das Caldas.
Mário Mesquita
Janeiro de 2022
* [O planeamento urbanístico não se traduz na realidade]. Entrevista de Mário Mesquita. [Lisboa]: jul. 1971. Transcrição da gravação dactilografada, 20 p. Nota do autor: entrevista para eventual publicação em livro.
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– É co-fundador e dirigente do Movimento de Esquerda Socialista (MES)
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Uma busca bibliográfica que acaba com um testemunho notável
Estávamos no final de 2021, na fase de preparação dos conteúdos para publicar. Encontrámos na bibliografia ativa anotada pelo Nuno a transcrição dactilografada de uma gravação, datada de julho de 1971, com 20 pp., intitulada “O planeamento urbanístico não se traduz na realidade” e com a seguinte menção: “Entrevista de Mário Mesquita para uma eventual publicação.”
Escrevemos ao jornalista e professor Mário Mesquita a pedir informação sobre o seguimento da história e ele responde: “Vou enviar-lhes uma informação circunstanciada o mais breve possível. Sou o autor da entrevista e tenho muito gosto em assumir a autoria”. Algum tempo depois, a 31 de janeiro, envia-nos “uma nota acerca do malogrado livro onde deveria ter sido inserida a entrevista”. Para conhecer este episódio da vida portuguesa que retrata o tempo do marcelismo, veja o testemunho de Mário Mesquita, que viria a falecer inesperadamente a 27 de maio deste ano.