Nuno Teotónio Pereira: a minha homenagem
Falo da homenagem de sábado passado [5 fevereiro de 2011], em que participei, a Nuno Teotónio Pereira.
Sabendo que a grandeza desse homem está muito para lá das homenagens que lhe possam fazer, também vou tentar a minha. Vai por escrito, contando histórias, porque de viva voz não conseguiria.
Quando, na referida sessão, lhe tocou falar, a primeira coisa que o Nuno fez foi tornar a homenagem extensiva «a todos aqueles que conhecemos e lutaram naqueles anos difíceis»; assim acompanhado, a homenagem parecia tolerável a esse homem humilde e solidário. Depois informou que, estando a chegar aos 90 anos, tinha órgãos a falhar, um deles «a memória, que se está a desfazer como pó». Falou não como quem se queixa, mas como quem se justifica, quase que a pedir desculpa, por já não poder ir a todas, como antes fazia.
Fazia mesmo!
Ora vejam:
Costumo passar pela FNAC, em cuja sala de leitura leio uma ou outra passagem de livros que não pretendo comprar, mas que quero ler.
Estava eu, um dia do ano de 2007, nessa actividade, quando ouvi pela instalação sonora o anúncio de que ia ocorrer o lançamento do livro Entre as Brumas da Memória, de Joana Lopes. Tinha visto uma referência sobre o mesmo no Expresso: tratava-se de reportar a acção do sector católico progressista, com que também tive ligação, e resolvi ir ao lançamento, no andar de cima.
Encontrei uma série de amigos e conhecidos que não via há anos, pois, embora alguns de nós tenhamos coincidido em actividades cívicas subsequentes, essa minha fase católica acabou aos vinte e poucos anos.
Ao lado da autora, na mesa, estava Nuno Teotónio Pereira. José Manuel Galvão Teles, também na mesa, referiu que, consultando os documentos do livro, havia muitas pessoas que participaram em várias das acções de católicos progressistas constantes do livro (abaixo-assinados, manifestos, fundação de cooperativas, edição de revistas, etc.), mas só havia uma que participara, em posição de destaque, em TODAS. Adivinhem quem; evidentemente Nuno Teotónio Pereira.
Esta revelação motivou uma grande ovação por parte dos assistentes.
Nuno, que ouve mal, não deve ter percebido bem a referência, pois viu-se que se debruçou sobre Joana Lopes (a autora), certamente informando-se sobre o que tinha sido dito.
Quando foi a sua vez de falar, começou por se regozijar por falar depois de Galvão Teles, pois podia corrigir algumas afirmações entretanto feitas. E disse que a sua pessoa não devia ser destacada, pois todas as iniciativas e acções dos católicos progressistas tinham sido colectivas; é certo que ele participara nelas, mas a iniciativa não fora nunca dele, mas de um grupo de activistas. (Não é preciso comentar!)
O resto da intervenção revelou a extraordinária lucidez que mantém; deu, por exemplo, nota de que faltava ao livro a campanha de Delgado de 58, porque acha que, por exemplo, as cartas de D. António, Bispo do Porto, derivam daí.
Disse depois que o angustiara pensar que as primeiras atitudes dos católicos de oposição ao conluio da Igreja com o Estado ditatorial só se tinham registado aos trinta anos de existência da ditadura. E que as primeiras posições colectivas de oposição à guerra colonial por parte de católicos só tinham vindo a público onze anos depois do início desta (em 1972). A sua tese é de que os católicos acordaram muito tarde, devido à força que sobre as suas mentes tinha a hierarquia da Igreja. Que lhes foi difícil libertar-se desta e tomar posições ditadas pelas suas próprias consciências. Aproveitou para, no momento mais comovente do fim de tarde, sacudir a água (os elogios que lhe haviam feito) do capote, dizendo que, talvez por ser mais independente da hierarquia da Igreja, importante tinha sido a figura de Natália (sua mulher, ao tempo, entretanto precocemente falecida), e não ele, no incentivo e dinamização das iniciativas.
Assim, Nuno homenageava a sua querida e saudosa mulher e, ao mesmo tempo, humildemente reduzia a importância da sua própria participação.
Em todo o discurso, Nuno situou-se, não no passado, a que os factos do livro nos remetem, mas na necessidade da aprendizagem, a partir daí, para a acção quotidiana. Para ilustrar esta postura, relembrou que o convidaram para discursar no primeiro 1.º de Maio livre, em representação dos «católicos progressistas». E o que ele disse foi que, nesse mesmo dia, acabara esse «rótulo». Deixava de haver católicos progressistas, pois estes passariam a exercer a sua acção integrados em organizações e partidos, no novo Portugal democrático. O passado já era… agora, profeticamente, ele soube ver onde era preciso mergulhar as mãos para continuar a actuar civicamente e inscreveu-se no MES (onde nos reencontrámos).
Agora que já não pode, ele mesmo, estar na liderança das iniciativas, Nuno preocupa-se com o que continua a precisar de ser feito e apela «a todos, para que, em conjunto ou individualmente, façam o que for necessário, mesmo com risco, para acabar com situações de clamorosa desumanidade que existem no nosso país, muitas vezes mesmo ao nosso lado».
A propósito desta preocupação do Nuno, de sempre estar a pensar no que há a fazer, de preferência a repisar no que está feito, conto agora o que se passou na comemoração dos 60 anos da Luísa Allen, no Banzão. Eu, por essa altura, fazia os possíveis por puxar pelo Vítor Wengorovius, para que ele conseguisse a oportunidade de uma segunda vida, pelo que me encarregara de tratar dele durante as saídas do Alcoitão. Ficámos, pois, na mesma mesa do Nuno. Durante o repasto, contei a história da passagem dos clandestinos, a salto.
O Nuno tinha uma casa em Marvão, no cume daquela inusitada montanha que se ergue na peneplanície alentejana, bem perto da raia. Beneficiando dessa situação privilegiada para a função, uma das actividades a que se dedicava – esta muito arriscada, nesses tempos de ditadura e de guerra colonial – era a de «passador» clandestino. A estratégia, por ele delineada, era a seguinte: um grupo numeroso, mulheres e crianças incluídas, em atitude de alegre passeio pelos campos, enquadrava os fugitivos à tropa, e ia deixá-los do outro lado. Dos cerca de vinte que fomos, regressámos, na circunstância desse dia, dezoito. Quem visse a trupe à ida e à vinda certamente que não iria contar as cabeças e a ausência dos que «saltavam» passaria despercebida. Se a guarda nos atalhasse o passo, o discurso era deixado ao Nuno, o mais velho e responsável, e que o tinha bem preparado. Aconteceu realmente que um GNR nos abordou, mas, felizmente, só à vinda. «Fomos à aldeia espanhola mais próxima comprar caramelos, senhor guarda. Os miúdos gostam imenso!» (Para o confirmar, os miúdos agitavam os seus pacotes de caramelos, efectivamente acabados de comprar na tal aldeia.) O guarda arvorou o seu melhor ar de autoridade, para dizer: «Sabem bem que isso é proibido. Vá lá, desta vez, mas não voltem a fazer.»
Chegados a Marvão, alguns de nós metemo-nos no 4L do Nuno, para ir, pela fronteira, buscar os foragidos, entretanto aboletados numa gruta, no meio do mato, quedos e silenciosos, trementes de medo e de frio. Eram uns bons 40 km que se tinham de fazer, por estrada, até chegar ao local. O Nuno, que conduzia, procurava abreviar o tempo de espera dos rapazes. Às tantas avistámos um polícia, de moto, atrás de nós. Torci os dedos para que não nos incomodasse. Não deu resultado: passou-nos e fez sinal para pararmos. Preparámo-nos para o embate, tentando acalmar-nos uns aos outros. Logo que desmonta, o polícia dirige-se a nós e diz qualquer frase em que avulta o nome denuncia, que os espanhóis dizem acentuando o i. O impacto foi tremendo no meu jovem coração; «estamos tramados», pensei. Contudo, o Nuno parecia manter a sua característica calma olímpica, só Deus sabendo como estaria por dentro. E a coisa logo se resolveu. Como? Denuncía quer dizer multa, em espanhol, e o chui logo se justificou dizendo que vira o nosso carro pisar um traço contínuo. Paga a multa, pensámos: «Ufa, foi por pouco!»
A história provocou risos e um ou outro comentário.
Logo o Nuno atalhou: «Sim, a história tem graça. Mas é passado, e eu estou mais interessado no futuro.» Acabado de se inscrever no PS, queria saber a opinião das cabeças que se sentavam àquela mesa sobre que acção útil seria possível desenvolver, tirando partido da inscrição partidária. O Nuno tinha então 80 anos, era o mais velho da mesa, mas era o que mais se preocupava com o futuro.
Nuno Teotónio Pereira é a pessoa que mais admiro e, para mim, uma referência muito mais importante do que ele próprio pode suspeitar.
Quando se deu o 25 de Abril, eu estava a fazer a tropa no Regimento de Transmissões de Lisboa, em Sapadores, e fui chamado, manhã muito cedo, de emergência, para o quartel, onde fiquei de prevenção. Não tendo tido prévio conhecimento do golpe, fechado no quartel, sem informações do exterior, aconteceu comigo o mesmo que se passou com os emigrados políticos: num primeiro momento, não estava seguro da natureza do golpe – seria democrático, ou uma coisa dos ultras do regime?
Só no dia 27, quando, na messe dos oficiais do quartel, vi pela televisão a reportagem da saída, de Caxias, do Nuno Teotónio Pereira e dos outros prisioneiros políticos, tive a certeza do que se passava e, ainda condicionado pelo medo instilado pelo regime anterior, tentei, encostado à parede da messe, evitar as lágrimas de felicidade, para não manifestar em frente da oficialidade as minhas inclinações antifascistas.
Os dias que se seguiram acabaram com tal tipo de inibição, e eu encetei movimentações de militares dentro do quartel, tentando consciencializá-los, numa perspectiva progressista. Passados uns tempos, vim a encontrar, numa reunião interpartidária em que representava o MES, representando uma outra organização de esquerda, um rapaz que trabalhara comigo na contabilidade do quartel. «Você aqui? Veja lá que, embora considerando-o um gajo porreiro, nunca suspeitei que sob a sua farda de cabo miliciano pulsasse um coração ardente em ímpetos progressistas.» Ao que ele retorquiu que nunca se interessara por política, até ao dia em que, nos tempos de brasa próximos do 25 de Abril em que tudo era possível, promovi uma reunião na messe dos soldados, na qual lhes falei dos seus direitos e deveres cívicos e dos perigos do regresso da velha ordem, contra os quais nos tínhamos de precaver. Só o acaso do encontro com esse meu ex-subordinado na tropa me deu consciência da importância de pequenas acções, como a da tal reunião em que se ganhara mais um adepto para a luta pela liberdade.
É uma das coisas que gostaria de dizer ao Nuno: eu sou um dos «cabos milicianos» das tropas dele. Ele é um dos principais inspiradores da minha dedicação a causas cívicas, individuais ou colectivas, no sentido de contribuir para melhorar as pessoas e as condições de vida.
É uma daquelas personagens de quem se pode dizer «quero ser como ele quando for grande».
Mas não é só isso: é também uma pessoa que me é muito querida. À sua maneira, quase com pudor de o demonstrar, o Nuno é uma pessoa muito afectiva. Por mais que fizesse por isso, nunca me poderia esquecer da cena que se passou vai para 40 anos, tantos quantos os que a minha filha mais velha comemorará este ano (sim, estou velho, também eu).
Deu-se, nesses idos, a coincidência de as nossas respectivas mulheres ficarem grávidas na mesma altura, estando os nascimentos previstos para datas muito próximas. Mas a gravidez da Natália complicou-se e ela morreu antes de dar à luz. Entre a Natália (querida, saudosa Natália) e o Nuno havia uma harmonia perfeita; eram quase uma só pessoa. A sua partida foi uma enorme tristeza para todos nós; para o Nuno, como que a amputação de uma parte do coração.
Tinha a minha filha mais velha muito poucos dias de vida, quando recebemos a visita do Nuno. Na nossa modesta e pouco recheada casa de jovens recém-casados, na Cruz-Quebrada, a porta de entrada dava directamente para a sala. Com o ar sereno de sempre, aquele característico movimento um pouco desajeitado sobre as pernas arqueadas, o Nuno mantinha as mãos atrás das costas enquanto espreitava, com um olhar duma ternura quase envergonhada por se dar a ver, a recém-nascida no berço. As mãos saíram-lhe de trás das costas, para exibirem o presente que seguravam: um casaquinho de bebé. «Foi a Natália que o tricotou, com muito carinho, para a vossa filha.»
O amarelo do casaquinho (a ecografia era uma ferramenta recente, e antes do nascimento não sabíamos o sexo do bebé) encheu a sala de luz, e Nuno pareceu-me um Rei Mago, que teve de arrostar-se com a morte de quem lhe era mais querido, para fazer a sua oferenda.
Eu não queria, mas fraquejo sempre nestes momentos e não consegui evitar que as lágrimas me corressem pela cara.
Raul Henriques
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