Arquitetura

Rita Ochoa

Viver nos Olivais, viver numa casa desenhada por Nuno Teotónio Pereira,
e como intervir numa obra de autor?

No Verão de 2017, mudei-me, desconfiada, para uma casa nos Olivais Norte. Durante vários anos, vivi em áreas centrais de Lisboa, São Bento, Campo Pequeno, Arco do Cego, Alvalade, … Até que, cansado de alugar casas e de “deitar dinheiro fora”, o Luís me convenceu que deveríamos comprar casa. Teria que ser numa área mais periférica – foi por esta altura que começou a ser difícil comprar casa em Lisboa.

Com a sua persistência e contrariando a minha resistência à mudança, o Luís acabou por me persuadir, com o argumento de ouvir cantar os passarinhos logo de manhã, mas (principalmente) do menor valor a pagar, face ao que pagávamos no Arco do Cego (numa das mais bonitas casas onde já vivi, mas onde as obras na pavimentação exterior deu origem a visitas quase diárias de cucarachas). Termos acabado de ter duas bebés gémeas precipitou a mudança.

Conhecíamos razoavelmente bem os Olivais, dos nossos périplos de fim de semana (em vez de passear ao Tejo ou ir à praia, vamos frequentemente ver casas, bairros, baldios, bocados de cidade…). Mas apesar do meu fascínio já antigo pela zona oriental, nunca se tinha proporcionado aqui viver, face a alguma desolação dos seus espaços, por comparação às efervescências de uma Lisboa mais central.

Foi assim que comprámos um T3, num dos seis blocos em banda (ou “correntezas”) do bairro dos Olivais Norte, projeto de 1963-65, da autoria de Nuno Teotónio Pereira, António Pinto de Freitas e Nuno Portas (aqui ainda como colaborador).

O que primeiro nos fascinou nesta casa foi a sua enorme amplitude, apesar da escassa área (não chega a 70 m2). A forma como está desenhada, sem corredores, apenas com um pequeno biombo de madeira que resguarda a entrada (mais tarde vimos um igual, no lixo!), ou o aproveitamento de espaço para arrumos, no teto (levando o pé direito ao limite e tirando partido da baixa altura através do uso da madeira no acesso aos quartos, acentuando por sua vez o conforto visual).

Também logo delirámos com o estore de madeira do passa pratos – esse icónico elemento percursor da flexibilidade na arquitetura – em perfeito estado, permitindo interligar a sala e a cozinha, aumentar a luz nos espaços, favorecer o seu uso dinâmico e ainda acentuando o sentido circular da planta.

Quando finalmente comprámos a casa e tivemos de fazer obras, a coisa complicou-se… tanto a cozinha como a casa de banho estavam em mau estado e já nem eram originais. Como tocar num espaço com tanta qualidade, como dialogar com o peso da sua autoria?

Nos primeiros tempos, fizemos inúmeras descobertas sobre os Olivais e sobre a casa (o texto em que Portas valoriza o cuidado colocado nos detalhes, como por exemplo o isolamento sonoro dos pavimentos (“nem os ricos o faziam então”), mas lamentando também o não terem tido a capacidade de acompanhar as evoluções das famílias. Descortinámos plantas, desenhos (ainda não desvendámos o mito urbano de que as janelas das cozinhas dos T2 nunca existiram – parece-nos terem sido introduzidas em obra). Descobrimos também como algumas das lógicas construtivas e materiais replicam, embora de forma mais modesta, situações e detalhes das chamadas “Torres Valmor”, mesmo ali ao lado. Descobrimos e revisitámos também outras obras do Nuno Teotónio Pereira. Na Covilhã, onde dou aulas em Arquitetura, encontrei as intervenções do Teotónio no âmbito do Polis e vibrei com a ideia do “aplanar a cidade” do respetivo plano de mobilidade pedonal, já do início do século 21.

Depois de muitas discussões e desenhos, optámos por intervir apenas no estritamente essencial. Rapidamente decidimos que não precisávamos da marquise – com enorme entusiasmo, decidimos resgatar a varanda! Ao tentar perceber o seu desenho original, constatámos que em todo o bloco de bandas (32 fogos) apenas havia uma varanda aberta. Pedimos para entrar, era um casal de arquitetos…

No dia em que a marquise foi destruída, a luz entrou massivamente pela casa, em especial na divisão que viria a ser o quarto das meninas – a mais exígua da casa (estreita até ao limite, com disposição “em comboio”), mas também a mais confortável. E foi assim que ficámos com uma maravilhosa varanda sobre o verde dos Olivais. Alguns meses depois (curiosamente, logo antes da pandemia), num ato moralizador, tentei convencer um novo vizinho a também resgatar a sua – ao que me respondeu, com espanto, que não precisava, pois não era fumador.

Na sala, não tivemos coragem de substituir as magníficas caixilharias de madeira por novas janelas com vidros duplos – o frio que entrasse!! Não deitámos abaixo nenhuma parede e tivemos que despachar várias tralhas e objetos (fiquei fã da Marie Kondo) para que tudo coubesse na casa. O chão da cozinha, mesmo com falta de alguns mosaicos (que não disfarçámos), foi mantido original. Um dia, chegámos à obra e tinha sido comprado vidro fosco para a janela da casa de banho (“obviamente! é uma casa de banho!!”).

Obra terminada, desde que aqui estamos, temos vindo a explorar aos poucos as múltiplas possibilidades da casa. Sempre que recebemos amigos, fazemos questão em promover visitas guiadas pelo espaço (que começam sempre pelo passa pratos).

Mas a casa não se limita à sua espacialidade interior. No exterior, cada fogo possui uma arrecadação, compensando a exiguidade das áreas. Durante muito tempo, o Luís guardou lá a sua mota. A cada edifício corresponde um bloco de arrecadações/ satélites da habitação, de planta em Y, acessíveis a partir da rua. Por sua vez, a cada satélite correspondem diferentes intervenções de artistas plásticos, humanizando o espaço exterior, como tão bem descreve a tese de Doutoramento da minha amiga Inês Marques. Para cada bloco de bandas, foi convidado um artista diferente. A nós, haveriam de nos calhar as intervenções escultóricas do Fernando Conduto (triste sorte a minha, o Conduto foi meu professor na Faculdade e deu-me a única negativa que tive na vida!). Estes satélites organizam ainda pequenos espaços de transição/ convívio exterior, os quais são nostalgicamente lembrados pelos meus vizinhos, das várias festas de aniversário que lá se faziam, à relva sempre verde na sua envolvente.

Durante a pandemia, saíamos frequentemente com as meninas, nessa altura com 5-6 anos, para os espaços mais imediatamente exteriores. Achámos desenhos nos pavimentos, jogos da macaca, muros e muretes informais, escadas, guardas, rampas, acontecimentos ou pequenos objetos urbanos que convidam ao brincar. A minha admiração pelos Olivais aumentou ainda mais. Foi por esta altura, devido à forma como aqui acontece o espaço público, que me apercebi que as crianças não precisam de brinquedos e que alivei a minha consciência por me aborrecer nos parques infantis.

Hoje já não faz sentido pensar na relva sempre verde. Os vizinhos reclamam com a chegada da Emel e com as Ciclovias (por sinal, também descobrimos que a freguesia dos Olivais é a mais envelhecida de Lisboa). Descobri histórias dos olivalenses, das icónicas piscinas da Avenida de Berlim (as primeiras olímpicas na cidade), da SFUCO, das idas ao Pão de Açúcar (hoje Spacio Shopping), das rivalidades com os bairros à volta e dos périplos dos miúdos de Chelas à Portela, da sensação de estar fora de Lisboa – que, apesar de atenuada pela chegada do metro, ainda persiste. Ao meu bairro, falta-lhe efervescência, vida urbana (que, mesmo aqui ao lado, Moscavide, tem de sobra). Tenho saudades das pastelarias do centro e do comércio mais arejado que aos Olivais (e em especial aos Olivais Norte) teima em chegar. Mas, surpreendentemente, cada vez que íamos ao centro, ao voltar, começávamos a notar uma certa sensação de alívio! Os Olivais entranham-se nos seus habitantes e começam também a entranhar-se em nós (na proporção em que o nosso ódio de estimação à vizinha e acanhada Encarnação também aumenta!)

Ao contrario dos meus vizinhos dos “Testemunhos”, não conheci o Nuno Teotónio Pereira. Se o tivesse conhecido, gostaria de lhe ter transmitido alegria e o enorme prazer que é vivermos nesta casa, por si desenhada. Esperamos que a nossas filhas venham também a reconhecer esse valor. Mais que lhes falar de arquitetura, acreditamos que serão todas estas vivências que as farão fazer compreender o sentido da boa arquitetura.

Rita Ochoa
Luís Miranda
arquitetos

Alice Rato
Laura Rato
filhas de arquitetos

Janeiro de 2024

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