Arquitetura Habitação

Um testemunho pessoal

A sala de trabalho do Nuno no Atelier da Rua da Alegria (fotografia do SIPA / Forte de Sacavém, 2008)

Olhar para trás e tentar fazer um balanço do que foi mais de meio século de labor profissional não é tarefa fácil nem isenta de riscos. Recordam-se momentos empolgantes de actividade criativa, mas também frustrações por não ter sido capaz de fazer melhor; as longas horas solitárias no atelier e também o intenso diálogo a duas, três ou mais vozes, a discutir soluções à volta do estirador; a emoção de trepar pelos andaimes e ver as obras a crescer, mas também o sabor amargo de muitos projectos trabalhados com ardor condenados às prateleiras mortas do arquivo; a necessidade de cumprir os prazos com noitadas no atelier e a sede de sair para a estrada, subir aos montes e falar com a gente das aldeias. Enfim, sentimentos contraditórios de boas e más recordações – assim na profissão como na vida.

1. Recuando no tempo, um primeiro sentimento de camaradagem vai para os colegas do curso da EBAL (ainda não “superior”), iniciado em Outubro de 1939, ao estalar a Segunda Guerra Mundial. Ao todo, não éramos mais do que onze, mas a eles devo a abertura de janelas para o mundo das artes, da literatura e da sociedade. Porque de tudo isto precisava a arquitectura que íamos aprendendo com os poucos livros e revistas que, em época de guerra, vinham de fora. Sem esquecer a breve passagem pela Escola do Porto, que então começava a ser dirigida por Carlos Ramos, em cujo atelier trabalhava, em companhia do Costa Martins, levados pelo Carlos Manuel.

2. Na transição dos finais do curso para o simultâneo início da prática projectual, foram da máxima importância as incursões transdisciplinares: a frequência do primeiro curso de Arquitectura Paisagista do Prof. Caldeira Cabral; idem das aulas de Orlando Ribeiro no Centro de Estudos Geográficos da Faculdade de Letras; a amizade com alunos do IST e a colaboração na revista “Técnica” da respectiva Associação de Estudantes; a passagem por Económicas e Financeiras, para acesso ao curso de Oficiais Milicianos, evitando perder um ano inteiro na tropa. E, sobretudo, o trabalho como arquitecto no gabinete de Engenharia do Prof. Vasco Costa. Ao mesmo tempo que surgiam as primeiras encomendas, do Alentejo e da Beira Baixa, bem antes do histórico “Inquérito”, deslumbrando-me com a arquitectura vernácula e com a sabedoria do povo, no quadro de uma miséria ancestral que tardava em ser superada.
Vieram entretanto a CODA, o I Congresso Nacional de Arquitectura, a militância pelo “moderno”, a fundação da UIA com a primeira viagem à Europa, o emprego na CML, assessorando S. Miguel (Jacobetty) na construção de Alvalade e a entrada para as Caixas de Previdência, que me proporcionou o casamento.

3. Funda-se então o atelier da Rodrigues Sampaio, com engenheiros amigos, o já sénior Chorão Ramalho e os colegas de curso Manuel Tainha e Alzina de Menezes, cada qual entregue aos seus projectos. Juntaram-se-me aí Bartolomeu da Costa Cabral, logo depois António Freitas e, mais tarde, Duarte Nuno Simões, para dar resposta à excepcional encomenda do Bloco das Águas Livres e à remodelação da sede da Fidelidade. Foi este grupo que, pouco tempo depois, se mudou para a Rua da Alegria de Cima (61 r/c).

Foi por essa época que, chegando do emprego ao fim da tarde, me comecei a habituar a partilhar o trabalho com colaboradores que haviam estado a riscar sobre o estirador durante todo o dia, deixando assim muitas vezes o desenho entregue a mãos alheias, para além da discussão em comum de ideias e soluções. Isto também porque me coube quase sempre a maioria das tarefas da gestão corrente e financeira e dos contactos e correspondência com os clientes – tudo isso consumindo tempo roubado à actividade projectual, também afectada por uma crescente intervenção cívica – política – religiosa – associativa.

Com tal prática, criavam-se condições para que os mais talentosos e assíduos pudessem afirmar-se como co-autores, ou até, como veio a acontecer, como autores principais. Prática que passou a ser uma imagem de marca do atelier, intervalada por alguns trabalhos com risco da própria lavra, à custa de serões prolongados e de sábados solitários. E que veio mais tarde a institucionalizar-se como norma, através da divisão de responsabilidades e da figura que dá hoje pelo nome tecnocrático de “director de projecto”.

4. De assinalar entretanto a riquíssima experiência da Federação das Caixas de Previdência. Na primeira década, como único arquitecto dos Serviços, participando na escolha de terrenos e na definição de programas, atribuindo encomendas a colegas distribuídos pelo país, sobre cujas soluções tinha de produzir pareceres, resultantes sempre de frutuosas trocas de impressões. Mais tarde, já como consultor, e portanto com mais tempo para o atelier, acompanhando a expansão dos Serviços, exemplarmente dirigidos por João Braula Reis – dinamizador de uma já vasta equipa de arquitectos. As duas dúzias de anos em que ali trabalhei, para além de me permitirem um aprofundamento da problemática da habitação social, proporcionaram-me uma regular participação em encontros e congressos internacionais, ao mesmo tempo que trouxeram a encomenda de projectos ao atelier, de norte a sul do país. Tudo no quadro de um elevado sentido de serviço público, porque, tratando-se de um organismo autónomo, estava liberto dos constrangimentos políticos que o regime ditatorial impunha.

5. Em 1957, a entrada do jovem e fogoso Nuno Portas marcou decisivamente novos rumos ao atelier, na continuação embora dos valores que vinham de trás. Dotado de uma grande e versátil capacidade de trabalho, de uma informação de ponta sempre actualizada e de uma facilidade de concepção e criação muito ricas, constituiu um esteio fundamental para todo o trabalho ulterior.

Ultrapassado que fora o entusiasmo juvenil pelos CIAM e Corbu, cujos livros, publicados na França de Vichy, podiam ser comprados durante a guerra na Bucholz da Avenida, sempre fui bastante avesso às teorias e relativamente alheio às escolas, tendências e linguagens que se manifestam na arquitectura. O que me motiva sempre mais é, de fora para dentro, o enquadramento socioterritorial e, no sentido inverso, a imaginada vivência dos utentes, bem como, naturalmente, as soluções construtivas a ter em conta. Daí terem-me já apelidado de “empírico”, epíteto que plenamente assumo, mas que por vezes me faz sentir algo desarmado diante do papel vegetal, face à questão crucial de como dar forma às ideias que vão surgindo.

Foi nesta insuficiência (além de outras) que Nuno Portas veio suprir ao longo dos dezassete anos que trabalhámos juntos, no quadro de preocupações que nos eram comuns. E no início dos quais nos instalámos, juntamente com Bartolomeu da Costa Cabral, na Rua da Alegria de Baixo (nº 25, 3º), acompanhados por dois profissionais de excepção: o desenhador António Forte e o maquetista Celestino Manso.

Foi um período em que não houve hiatos de trabalho e em que as encomendas se sucediam e os projectos se sobrepunham, levando por isso a dividir responsabilidades e tarefas e a diversificar metodologias e linguagens (lembro Pedro Vieira de Almeida e Gonçalo Byrne, entre outros) e, ao mesmo tempo, a aumentar o corpo de colaboradores / co-autores. Período que acabou por constituir não só a fase central, mas a mais marcante do atelier, coroada por um trabalho que significou uma nova viragem: o Restelo. Viragem tanto na escala como nas formas: o plano, protagonizado principalmente por Nuno Portas, e os projectos do que era edificado, protagonizados sobretudo pelos recém-chegados Pedro Botelho e João Paciência.

6. A ruptura do 25 de Abril, com a ida de Nuno Portas para o governo, o incremento da própria militância política, que já vinha de trás, e a suspensão de encomendas conduziram à dissolução do atelier, à quase paralisação do trabalho e ao início de uma fase marcada pela irregularidade e pela incerteza. Abrindo, por isso, caminho a actividades para além do projecto, começando por uma participação intensa, juntamente com Pedro Botelho, no projecto SAAL. Depois foi o apaixonante calcorrear pelas ruas de Lisboa, com Irene Buarque a fazer a fotografia para o estudo das tipologias de habitação na capital, com o recurso a uma bolsa da Gulbenkian, a que se seguiu uma longa viagem de estudo pelo Brasil, com o apoio do Instituto do Património deste país. Dá-se depois a retoma do atelier, na viragem dos anos 70 para os 80, com o Plano de Castelo de Vide e a continuação de projectos para o Restelo que, firmando uma frutuosa associação com Pedro Botelho e com a colaboração de Luís Borges da Gama e de Rosário Beija, tem permitido alcançar êxitos e, ao mesmo tempo, enfrentar revezes.

Ao longo das últimas duas décadas, fomos desenvolvendo trabalhos importantes, como o do Cais do Sodré, mas tivemos também de suportar contrariedades, como a anulação de contratos com projectos em pleno andamento e concursos não ganhos. Mais recentemente, o Programa Pólis e outros trabalhos para a Covilhã criaram inéditas oportunidades a nível do espaço público e da arquitectura do território, em parceria com os paisagistas Luís Cabral e Carlos Dias.

7. Ao fazer-se um balanço de todos estes anos, verifica-se que, para além de moradias para amigos e familiares, a lista de obras e planos levados a bom termo é largamente dominada pela encomenda institucional, provinda sobretudo de câmaras municipais, paróquias, empresas e organismos públicos, e, mais raramente, de serviços da Administração Central, ao contrário dos inúmeros projectos que ficaram nas gavetas, em que os mais significativos provieram da chamada promoção imobiliária – porque mesmo alguns edifícios de habitação ou escritórios que lográmos construir, como o Bloco das Águas Livres ou o “Franjinhas” não tiveram esta origem. Tal facto alguma coisa revela, seja incapacidade ou incompatibilidade, como se lhe queira chamar. Mas a que não será alheio o forte sentido de serviço público que sempre caracterizou o nosso trabalho e que, talvez por isso, tem de alguma forma dificultado lidar com o mercado. Resta-nos esperar que a ideologia e o poder crescentemente dominantes e tendencialmente totalitários desse mesmo mercado não ponham em causa a encomenda pública que sempre foi o cerne da actividade do atelier.

8. Como remate desta tentativa de balanço, certamente não isenta de “erros & omissões”, cabe-me dirigir um abraço de gratidão a todos aqueles e aquelas que, ao longo do tempo, ajudaram a construir a credibilidade do atelier. E também aos que estiveram na origem e puseram de pé esta exposição: o Presidente, então de Lisboa e hoje da República, Jorge Sampaio, que, vai para dez anos, me convidou a fazê-la; a Ordem dos Arquitectos, o Centro Cultural de Belém e o IPPAR, que se abalançaram a promovê-la; e a toda a equipa, que, com Ana Tostões e João Afonso, tanta competência, paciência e entusiasmo demonstrou na sua concepção e concretização.

Publicado em TOSTÕES, Ana (Coord.). Arquitectura e Cidadania: atelier Nuno Teotónio Pereira. Lisboa: Quimera Editores, 2004.