Atividade política

PORTALEGRE | As eleições de 1969

Uma experiência de que guardo uma grata memória foi a das eleições de 1969. As primeiras no consulado de Marcelo Caetano, e que tiveram um grau de liberdade maior do que as do tempo de Salazar e por isso foram alvo de enorme expectativa. Tendo concorrido duas listas da oposição, a CDE/Comissão Democrática Eleitoral e a CEUD/Comissão Eleitoral de Unidade Democrática, ligada à então recente Acção Socialista Portuguesa – optámos pela primeira, lançada pelo Partido Comunista e à qual aderiram os chamados católicos progressistas e de que o nosso amigo Francisco Pereira de Moura era a figura dominante.

Tendo casa em Marvão e por isso com ligações a oposicionistas da região, fiz parte da lista por esse distrito, juntamente com o poeta Joaquim Namorado, o marquês de Fronteira, Fernando Mascarenhas, e outros dedicados companheiros. Pude então dar-me conta do medo que ainda existia em afrontar o regime, em amplas camadas da sociedade portuguesa. Sendo necessárias 50 assinaturas para subscrever a candidatura, percorremos incansavelmente cidades, vilas e aldeias do distrito, deparando até com resistências inesperadas da parte de pessoas que nos tinham sido indicadas como da oposição. De tal maneira que, quando, exaustos, chegámos ao Governo Civil no último dia do prazo para entregar as listas, os serviços tinham encerrado havia já duas horas. Desesperados com o fracasso, eu e a Natália fomos sentar-nos num café da cidade onde redigi um comunicado à população, que, clandestinamente, foi impresso em Lisboa e de que distribuímos milhares de exemplares durante a campanha que se seguiu. Portalegre foi o único distrito onde a oposição não concorreu, mas isso não nos fez baixar os braços: corremos de novo todo o distrito, aproveitando aquele intervalo de liberdade para alertar as pessoas e sacudir o medo que as subjugava. É claro que as eleições foram falseadas e as listas da União Nacional (baptizada no ano seguinte por Caetano de Acção Nacional Popular), ganharam em todo o país.

PEREIRA, Nuno Teotónio. Memórias inacabadas 6 – Associativismo e política em tempos de ditadura. Lisboa: 2008

 

1. As eleições de 1969 foram as únicas nas quais a Oposição concorreu e foi até às urnas durante o Estado Novo. Em todas as outras, por falta de condições democráticas mínimas, recusou-se a fazê-lo. Desta vez, havia a expectativa de saber até que ponto poderia ir a abertura prometida pelo recém-empossado (27 setembro 1968) Presidente do Conselho de Ministros, Marcelo Caetano.

Logo em janeiro um grupo lhe escreveu uma carta: “Os signatários, todos cidadãos portugueses conscientes dos seus direitos civis e políticos, interpretando as aspirações de uma grande parte do Povo Português, às quais o Governo não poderá deixar de se sentir obrigado a dar satisfação, vêm comunicar a Vossa Excelência que, nesta data, se constituem em Comissão Promotora do Voto, com o que se propõem contribuir para a concretização das condições regulamentares e de consciência cívica conducentes à seriedade e autenticidade do próximo acto eleitoral.” Depois de explicitarem os “motivos e condições” que fundamentam a iniciativa, os autores anunciam que a sua primeira atividade consistirá em remeter ao chefe do governo “uma exposição com as reclamações mais urgentes e as correspondentes propostas de solução , no sentido de imediatamente se obviarem os graves inconvenientes da actual legislação eleitoral (…)”, não sem antes enumerarem algumas das suas principais exigências:
– “elaborar um novo Recenseamento Eleitoral; alterar e completar a actual Lei Eleitoral em ordem a possibilitar a fiscalização imparcial dos actos pré-eleitorais e eleitorais;
– dar igualdade de tratamento no que respeita à organização e preparação das listas, propaganda e acesso à informação (…);
– dar autorização para organização e livre actuação das forças políticas;
– promover uma campanha de esclarecimento da opinião pública (…);
– uma campanha junto das entidades a quem couber a direcção das várias operações eleitorais, no sentido de as tornar plenamente conscientes da alta responsabilidade cívica em que estão investidas e das responsabilidades penais em que incorrem se não for devidamente respeitada a autenticidade do voto.”

O Nuno fez parte deste grupo de 43 pessoas, das quais 12 (que não ele) eram indicadas na carta como constituindo uma “Comissão Delegada” para agirem em nome de todos. Este facto está devidamente assinalado num dos processos da polícia política dedicado a NTP.

2. As eleições foram marcadas para 26 de outubro com uma antecedência mínima, de modo a dificultar a organização da Oposição. Através dos documentos deixados pelo Nuno no seu arquivo pessoal, e de outros encontrados em processos com o seu nome na Torre do Tombo, reconstituímos parte do que aconteceu no distrito de Portalegre antes e depois do momento traumático em que a entrega das listas se atrasou, impedindo a candidatura oposicionista, numa situação que se verificou ser única em todo o país (ver a parte das Memórias inacabadas 6 acima transcrita).

À procura da coragem

3. Com data de 17 de setembro são impressos em Portalegre 2.000 exemplares de um comunicado dirigido à população, convocando para um comício no Cine-Teatro Crisfal no dia 22, às 21.h30, no qual se pode ler “Aceitará o povo do Distrito de Portalegre ficar à margem do grande debate nacional que se prepara ou quererá organizar-se para concorrer às urnas”? A Ordem de Trabalhos tem três pontos: “1. Informação sobre o momento político nacional; 2. Atitude a tomar face às eleições no Distrito; 3. Eventual organização da Comissão Democrática Eleitoral”. Assinam: Fernando Mascarenhas, José Gomes, Nuno Teotónio Pereira, Joaquim Trindade, Raul Pinto.

Arquivo NTP

Deste comício temos notícias através de dois relatório da DGS, ambos datados de 23 de setembro. Num informa-se que alguns elementos oriundos de Lisboa, convidados como “técnicos”, e Nuno Teotónio Pereira, proposto como candidato, foram impedidos de entrar no Cine-Teatro em virtude de disposições do Código Administrativo só admitirem a presença de cidadãos recenseados pelo mesmo ciclo eleitoral. Um apelo feito ao Governador Civil não surtiu efeito, o que levou o Presidente da Comissão Eleitoral, Feliciano Falcão, “a ameaçar enviar telegrama a Sua Excelência o Senhor Presidente do Conselho, queixando-se da recusa.” O documento encerra com a informação de que se junta “um relatório do agente Ezequiel Damião que pôde assistir ao acto” e “uma relação das viaturas que estacionaram junto do edifício Cine-Teatro ‘Crisfal’ durante o lapso de tempo em que se realizou a cessão [sic].”

O medo foi a principal presença no comício. Relata o agente “superiormente incumbido de assistir à reunião de oposicionistas” que, feita uma primeira apresentação dos objetivos do encontro e da Ordem de Trabalhos, se convidou os participantes a dar as suas opiniões e, “nessa altura começou a notar-se uma certa apatia nos presentes, dando a impressão de que não estavam verdadeiramente interessados em discutir os assuntos propostos, parecendo mesmo que estavam a fazer ‘frete’ com a sua presença.” Após muita insistência da mesa, escreve, houve uma intervenção da plateia, “apoiada por uma salva de palmas”. Os promotores voltaram então a tomar a palavra e, “não obstante a boa vontade e insistência dos componentes da mesa, a assistência calculada em cerca de 100 pessoas, constituída principalmente por jovens, continuava a dar mostras de desinteresse, escusando-se a falar e a discutir os assuntos do momento.” Mais uma intervenção da mesa, sobre a constituição da lista de candidatos, perante a qual “houve total indiferença, pelo que os membros da mesa se viram na contingência de apresentar uma lista por eles elaborada, propondo a sua aprovação, o que sucedeu por unanimidade, excepto um voto contra e uma abstenção.” Terminado o comício por volta da meia noite, como previsto, o agente conclui: “Do que me foi dado observar, verifica-se que a referida reunião, que decorreu ordeiramente, redundou em autêntica desilusão para os seus componentes, verificando-se uma desorientação quase total.”

4. Foi neste ambiente que os quatro candidatos, Nuno Teotónio Pereira (arquiteto), Fernando Mascarenhas (Marquês de Fronteira), Joaquim Trindade (contabilista) e António Mendes Aleixo (engenheiro) se esforçaram por percorrer o distrito para angariar as assinaturas necessárias à apresentação da candidatura junto do Governo Civil. Com o resultado que já sabemos.

A ténue centelha acesa que não se extinguirá

5. O comunicado ao país, mencionado nas Memórias inacabadas 6 de NTP, é impresso na Tipografia Leandro em Lisboa (a mesma onde se imprimiam os Cadernos GEDOC), com data de 26 de setembro. São 5.000 exemplares, a espalhar pelo distrito. Nele se faz uma análise do fracasso da candidatura oposicionista em Portalegre e se convoca a população para o presente e o futuro: “O povo do Distrito de Portalegre, transitoriamente sem possibilidade de se fazer ouvir, sabe que os seus problemas são os problemas do País, e sabe por isso que a voz de toda a Oposição Democrática será a sua própria voz.“

Vale a pena lê-lo na íntegra, aqui.

Arquivo NTP

O que falta fazer

6. Seguiu-se a campanha dos candidatos que teimaram em se fazer ouvir no distrito, aproveitando as oportunidades. Temos conhecimento de uma delas: a comemoração do 5 de Outubro, na qual o artista discursante exercitou os seus dotes de malabarista para fintar mais uma imposição da ditadura em tempo eleitoral.

A República fez muita coisa, disse, mas “Tudo isto ficou por fazer. Tudo isto é necessário fazê-lo. E só um novo 5 de Outubro o fará.” –  Estávamos a cinco anos do 25 de Abril.

“O 5 de Outubro não foi, ainda e finalmente, um acto isolado da nossa História, uma espécie de acontecimento milagroso que mudou o curso dos acontecimentos. O 5 de Outubro foi a eclosão repentina de muito trabalho anterior, obscuro, persistente, entusiástico, sacrificado, de estudo, de propaganda e de luta quotidiana.”  – Assim foi também o 25 de Abril.

“Por isso o povo oprimido, o povo desprezado, o povo que só procura a paz, tem-se visto, no decurso da nossa História e da História de todos os povos, obrigado a usar das armas precárias que consegue obter, para, com a violência dos justos e dos oprimidos, abater a violência dos poderosos, tanta vez mascarada de ordem e de paz.” – Assim continuamos.

O discurso completo do Nuno está aqui.