Texto Atividade política

O que o 5 de Outubro fez e aquilo que não pôde fazer (1969)

PEREIRA, Nuno Teotónio. O que o 5 de Outubro fez e o que não pôde fazer. Portalegre, 5 out. 1969. Original manuscrito, 25 p. e dactilografado, 6 p.

O QUE O 5 DE OUTUBRO FEZ E AQUILO QUE NÃO PÔDE FAZER

Pediram-me para vir aqui falar sobre o 5 de Outubro. Mas sobre um aspecto especial do 5 de Outubro, e que era este: o 5 de Outubro hoje – quer dizer: o que é que esta data e o acontecimento que ela comemora nos pode dizer hoje a nós, portugueses democratas de 1969.

Mas eu não posso corresponder ao convite que me foi feito. E porquê? Porque o Sr. Governador Civil pôs como condição para que esta sessão se pudesse realizar, que fossem apenas feitas referências ao facto histórico e banidos quaisquer aspectos que pudessem ser de propaganda política ou eleitoral.

Ora, se esta determinação do Sr. Governador Civil me condiciona a palavra, roubando qualquer interesse que aquilo que eu gostaria de dizer poderia ter, traz-nos uma confirmação, confirma aquilo mesmo que nós já sabíamos: que as autoridades renegam o 5 de Outubro, e portanto, as manifestações oficiais decididas em Conselho de Ministros e que hoje decorrem na capital são hipócritas. O Governo não se sente de modo algum herdeiro do 5 de Outubro; o Governo é herdeiro daqueles que foram apeados pelo 5 de Outubro. E o Governo tem medo que os ideais que levaram os republicanos à luta tenham qualquer eco hoje em dia: ele sabe que seria dele a vitória, dele e todo o sistema político, económico e social que o apoia e a que ele serve de protecção. Em protesto contra a limitação arbitrária que foi imposta a esta sessão, à qual forçadamente me vejo compelido a submeter. Por causa dele não vos poderei falar.

Um minuto de silêncio pelos que morreram a combater pela liberdade do povo; por aqueles que, na sequência do 5 de Outubro, continuam a arriscar a sua vida e a sua liberdade pela defesa dos fracos e dos explorados: os que morreram no Tarrafal, nas prisões da Pide, pelos que foram torturados, por aqueles que ainda hoje sofrem nas masmorras do Estado Novo.

O QUE O 5 DE OUTUBRO FEZ E AQUILO QUE NÃO PÔDE FAZER

Falar do 5 de Outubro de forma abstracta certamente não nos interessa. Se estamos aqui por causa desse acontecimento é porque ele tem a ver connosco: e porque tem a ver connosco, teremos de falar concretamente do que foi e do que não foi. O 5 d’Outubro instaurou o regime republicano entre nós – interessa-nos saber o que a República fez e o que não chegou a fazer; e o que não chegou a fazer significa aquilo que está por fazer.

O regime instaurado pelo 5 de Outubro foi, como sabemos, a república democrática liberal, fórmula que consubstanciava nesse momento histórico a participação do povo nas decisões do Governo e na marcha da Nação. Essa participação pressupunha a abolição dos privilégios e uma liberdade dos cidadãos ainda muito teórica e portanto limitada na prática concreta.

Mas foi uma fase necessária, e por isso uma etapa indispensável, um serviço fundamental prestado ao povo e à Nação.

O que a República fez nessa linha foi grande, foi enorme, e se muitas conquistas não puderam perdurar, isso deveu-se certamente a alguns erros – que sempre os haverá – mas sobretudo às maquinações dos inimigos do progresso, que interromperam a obra apenas iniciada.

O que fez então a República, apenas no espaço de 16 anos incompletos, cortados a meio por 4 anos de guerra mundial?
– Aboliu os privilégios que restavam da nobreza e do clero, colocando todos os cidadãos no mesmo plano de dignidade política.
– Separou a Igreja do Estado, acção que deparou com a resistência e o protesto dos meios católicos, mas que antecipou de meio século a doutrina definida pelo Concílio Vaticano II, desligando a igreja de quaisquer laços com o poder político.
Iniciou a obra de saneamento financeiro do País, que tinha sido conduzido à bancarrota pela Monarquia Liberal.
– Impulsionou e renovou o Ensino, de tal maneira que o que há ainda de sólido no nosso ensino universitário data da reforma de 1911.
– Instaurou a moralidade na administração pública, através de uma governação impoluta, honestíssima, de puro e dedicado serviço do bem público.
– Deu novo vigor às liberdades públicas e aos movimentos operários, possibilitando a marcha para uma verdadeira e total democracia.
– Incrementou a ocupação e o progresso das Colónias, evitando, com a opção corajosa da entrada na Guerra Mundial, que viessem a ser anexadas pelo imperialismo das grandes potências, assegurando, do modo possível naquela época, a presença portuguesa naqueles territórios.

Tudo isto já foi muito, e foi feito em pouco tempo. E muito do que foi feito, foi depois destruído e depauperado por mais de 40 anos de falsa república, de anti-república, de verdadeira monarquia sem coroa.

É verdade que o regime republicano tinha contradições, era limitado na sua forma de ver a democracia e as liberdades, daí muitos dos seus erros e insuficiências. Mas continha em si o germe da força popular, a seiva criadora de uma verdadeira e completa democracia. Se não a pôde construir, foi porque o tronco ainda débil, mas vicejante, foi cortado pelo gume de uma espada acerada, manejada por um braço que não era do povo, e que os rebentos que, de todos os lados teimavam em florir, foram depois, ao longo dos anos, criminosamente cortados e destruídos.

Aquilo que a República de 1910 não pôde fazer, tê-lo-ia feito mais tarde, estava na linha mais autêntica da sua continuidade: a abolição dos condicionamentos económicos e sociais que impedem a dignidade do Homem e a plena liberdade do cidadão, isto é, o socialismo: uma participação completa e concreta na obra que é de todos.

O que ficou por fazer então? Não vou fazer uma enumeração exaustiva, como não a fiz do que fez a República, mas apenas indicar alguns tópicos do que me parecem ser os aspectos mais importantes:
– A participação dos trabalhadores, tanto na distribuição justa dos frutos do seu trabalho, como, concomitantemente, no governo do País.
– O ensino e a cultura para todos, não uma cultura fabricada por elites de intelectuais, mas uma cultura elaborada também pela participação activa das massas populares.
– A reforma agrária, que entregue a terra àqueles que efectivamente e penosamente a trabalham e organize a produção em moldes progressistas e rentáveis.
– O planeamento económico e social, não aquilo que finge fazer agora, tapando, com uma máscara sorridente, a efectiva busca dos lucros pelas classes possidentes, mas um planeamento efectivo, que oriente com eficácia a marcha da economia de acordo com os interesses do povo.
– O seguro social satisfatório para todos os trabalhadores, por forma a suprimir a ansiedade pelo dia de amanhã e a miséria imerecida, na velhice, na doença ou no desemprego, por quem passou uma vida a trabalhar.
– A medicina para todos, em igualdade de condições, colocando ao efectivo alcance das massas trabalhadoras, as possibilidades de combate à doença de que hoje só gozam os privilegiados, e isto, não como uma esmola que se pede, mas como um direito que se exige.
– A auto-gestão das empresas, por forma a fazer delas verdadeiras comunidades de trabalho, onde não existam interesses antagónicos, que agora se fazem por esconder à sombra do chamado sistema corporativo.
-A integração do povo português na comunidade internacional, não à sombra protectora das grandes potências, mas no lugar de combate que lhe compete tomar, ao lado das nações pobres, que lutam contra o imperialismo económico e militar dos senhores deste mundo.
– Finalmente, a descolonização dos territórios ultramarinos, no livre respeito pela cultura e pelos interesses dos povos que os habitam, procurando defender as populações europeias minoritárias que ali trabalham.

Tudo isto ficou por fazer. Tudo isto é necessário fazê-lo. E só um novo 5 de Outubro o fará.

Duas formas de ver o 5 de Outubro

Há quem reduza hoje o 5 de Outubro a muito pouco. Há mesmo quem esteja interessado nisso. Mas se o 5 de Outubro tivesse sido apenas uma mudança de bandeira, ou um simples golpe militar, ou um acontecimento isolado na nossa História, como muitos o querem fazer crer, não valeria a pena nós termo-nos reunido aqui hoje. Para isso bastaria o programa oficial das comemorações em Lisboa, com desfile de tropas na Baixa, charanga e banda de música. É porque nós sabemos e acreditamos que o 5 de Outubro foi mais do que isso, que estamos hoje aqui. Na verdade, o 5 de Outubro foi um elo forte, um elo decisivo, numa cadeia de acontecimentos: teve antecedentes e há-de ter seguimento. E é precisamente para lhe dar seguimento, para lhe dar continuação, para construir o decurso da História – é para isso que nós estamos aqui.

Efectivamente, o 5 de Outubro não foi apenas uma mudança de nome, uma mudança de bandeira, uma mudança do hino nacional. Foi uma transformação da vida nacional, uma mudança das mentalidades, uma alteração de objectivos e de métodos quanto à forma de conceber a sociedade e de governar o País.

O 5 de Outubro também não foi apenas um golpe militar, daqueles que um general ou um grupo de coronéis por vezes têm feito e continuam a fazer, como aconteceu entre nós em 1926 e agora, recentemente, no Brasil, na Grécia, na Bolívia. Foi uma revolução popular, em que grupos corajosos de civis armados, organizados por um professor universitário e onde se viam estudantes e intelectuais ombro a ombro com operários, deram tudo por tudo, ao lado de marinheiros e soldados, que não representavam aqui o poder dos militares, mas eram o exército do povo.

O 5 de Outubro não foi apenas uma revolução em Lisboa, assegurando, com a vitória na capital, o domínio republicano em todo o pais. Foi uma revolução do povo português em toda a parte, rapidamente secundada a revolta na capital por movimentos insurreccionais nas cidades da Província, onde núcleos de cidadãos, igualmente corajosos e decididos, se souberam organizar para assegurar a vitória do Povo.

O 5 de Outubro não foi, ainda e finalmente, um acto isolado da nossa História, uma espécie de acontecimento milagroso que mudou o curso dos acontecimentos.

O 5 de Outubro foi a eclosão repentina de muito trabalho anterior, obscuro, persistente, entusiástico, sacrificado, de estudo, de propaganda e de luta quotidiana. Foi mesmo precedido de uma tentativa sufocada: o 31 de Janeiro no Porto. E há-de ter seguimento: o seguimento que nós quisermos e soubermos construir, o seguimento que nós arrancarmos ao poder dos opressores.

Porque, meus amigos, o 5 de Outubro, no fim de contas, foi uma revolução; uma revolução com armas, com tiros e com sangue; com heróis enaltecidos e com heróis desconhecidos; com a sua glória, mas também com o seu sofrimento, as suas dores, as suas lágrimas. E isto porquê?. Porque os republicamos eram sanguinários, militaristas e violentos? Nada disso: o ideal republicano de 1910 era feito de pacifismo, de ordem, de civismo. Isso aconteceu porque os detentores do Poder, como sempre aconteceu e acontecerá, nunca o largam de boa vontade, por maiores que sejam as injustiças cometidas e os erros praticados. Os detentores do Poder usam todas as armas, desde os canhões do exército até às torturas da Polícia, desde a propaganda demagógica até à opressão económica, desde a intimidação até à deformação das consciências. Por isso o povo oprimido, o povo desprezado, o povo que só procura a paz, tem-se visto, no decurso da nossa História e da História de todos os povos, obrigado a usar das armas precárias que consegue obter, para, com a violência dos justos e dos oprimidos, abater a violência dos poderosos, tanta vez mascarada de ordem e de paz.

Meus amigos:

O 5 de Outubro de 1910 ficou parado na História. Mas o 5 de Outubro deve prosseguir, é preciso que prossiga, para que em Portugal o pão chegue para todos, a cultura seja para todos, a liberdade seja de todos. Mas o 5 de Outubro, para prosseguir, precisa de nós. O novo 5 de Outubro não se fará sem nós. Ele espera por nós.

Portalegre, 5 de Outubro de 1969 – campanha eleitoral da CDE