Arquitetura

João Pedro Dias

Esboço em perspetiva exterior do Centro Paroquial de Monforte da Beira

Em meados de Setembro do ano passado, iniciei os trabalhos de investigação com o objetivo de fazer no decorrer de 2025, em Castelo Branco, uma Exposição sobre Projetos Não Construídos, projetados para este concelho ao longo do Século XX.

O meu trabalho de doutoramento centra-se, principalmente, na análise da arquitetura construída e existente na cidade, e a minha base de dados contava apenas com uma obra de Nuno Teotónio Pereira – o Conjunto de Casas de Renda Económica promovido pela Federação de Caixas de Previdência, na (atual) Avenida General Humberto Delgado.

Por esse motivo, até então, a minha pesquisa não tinha sido exaustiva quanto aos projetos que não saíram do papel.

Revisitar fontes já familiares aplicando este novo filtro antevia a possibilidade de descobrir referências que me tinham passado despercebidas. E assim foi.

No SIPA deparei-me com um registo intrigante – IPA.00027923: Centro Paroquial de Monforte. Um processo pertencente ao arquivo pessoal de NTP, que apenas referia a data – 1958 e a colaboração do Arquiteto Nuno Portas.
Conheço relativamente bem Monforte da Beira. Nunca tinha ouvido falar deste projeto. E nas indagações que fiz às gentes da aldeia, ninguém me sabia dizer nada sobre o projeto. Seria outro Monforte?

O achado deixou-me num frenesim. Tinha uma viagem a Lisboa agendada para daí a um mês e haveria oportunidade de dar um salto ao Forte de Sacavém.

Nesse intervalo de tempo pude rever a bibliografia que tinha por perto, tentando compreender o contexto do projeto e o que NTP estaria a fazer por volta de 1958: A Igreja de Águas ficou pronta havia poucos meses; Nuno Portas ingressara recentemente no atelier; o MRAR operava em pleno; o Inquérito à Arquitetura Popular decorria e não tardava em ser publicado…

Folheei repetidamente os livros sobre NTP sem encontrar rasto deste projeto.

Rebobinei memórias.

A minha primeira visita à Igreja das Águas, enquanto estudante de primeiro ano da Faup, que me trouxe o espanto do encontro sublime entre Luz e Pedra e a confirmação de uma de excelente obra de arquitetura na Beira Baixa, não muito longe da minha terra natal.

Também as saborosas palestas improvisadas por Nuno Portas na Casa Cor-de-Rosa e a oportunidade perdida de lhe perguntar por este projeto.

Por fim as longas conversas com o Arq. Pires Branco, que frequentemente assinalava o seu contacto com o NTP e a influência do Movimento de Renovação da Arte Religiosa e da Igreja Paroquial de Águas nos seus projetos para as Igrejas do Estreito, Valongo e Janeiro de Cima.

Finalmente o dia chegou.

Na sala de leitura do Forte de Sacavém entregam-me cuidadosamente duas pastas e dois pequenos envelopes… e dão-me nota que aquele projeto, provavelmente, nunca tinha sido consultado desde que fora tratado e ali depositado.

A primeira pasta, de desenhos, provocou-me uma sensação de familiaridade. Parecia uma pasta de Projeto 1, um verdadeiro ‘processo’ – folhas de papel de segundas vias, de diferentes formatos, organizadas num método aparentemente caótico, mas que registavam o percurso de pesquisa… avanços e recuos. E um projeto profundamente enraizado no lugar.

Naqueles instantes, compreendi por que razão NTP sempre foi visto na Escola do Porto como ‘um entre nós’.

Depois dos desenhos, a correspondência. Esta confirmou a minha esperança. Afinal Monforte era mesmo o ‘da Beira’.

As missivas entre o arquiteto e o pároco de Monforte da Beira deixam transparecer uma proximidade notória. Ao ponto do Padre José Pinheiro lhe cobrar sem pudor a demora no “envio dos bonecos”. Talvez uma amizade prévia possa justificar a escolha de NTP para uma encomenda num território tão remoto como a Raia Beirã dos anos 50.

Continuando para a outra pasta, o projeto revela-se ainda mais fascinante.

Percebia-se um terreno difícil, nas imediações da Casa do Povo – um lote ainda hoje livre, com um poço de água, um bem precioso neste território mas que condicionaria as hipóteses de implantação.

As peças escritas e desenhadas do projeto descrevem um programa e uma solução que ainda hoje seriam audazes:

– Na frente do terreno, uma singela residência para o pároco e um parque infantil anunciando a vontade de abertura do equipamento à comunidade.

– No tardoz, um auditório com capacidade para 400 pessoas, “para a realização de palestras, récitas teatrais e projeções cinematográficas (…) e um grupo de salas para reunião”. Um verdadeiro equipamento cultural concebido com cuidado e arrojo, onde não faltava um bar e uma cabine técnica para projeção.

As peças desenhadas da proposta revelam uma dualidade interessante. Por um lado, uma grande sofisticação nos estudos em corte e planta. Por outro, o intento disruptivo esbate-se nas perspetivas e nos alçados que procuram uma integração serena com a envolvente, dissimulando a volumetria da intervenção atrás da casa paroquial.

Este contraste reflete-se também na escolha de materiais que que oscila entre a tradição e a modernidade, com a alvenaria de xisto a ir de encontro às chapas e à estrutura metálica menos visíveis por estarem na cobertura.

Sente-se, para além de um profundo respeito pelo contexto local, que este projeto se alinha com o questionamento dos princípios iniciais do Modernismo, um processo de revisão que se estava a consolidar nesta viragem de década.

Também não é difícil sentir a influência do Inquérito à Arquitetura Popular, promovido pelo Sindicato Nacional dos Arquitetos. O levantamento exaustivo da arquitetura vernacular portuguesa teve um impacto significativo na classe, levando-os os arquitetos a incorporar materiais, técnicas e soluções espaciais das construções vernaculares nos seus próprios projetos. A abordagem de NTP em Monforte da Beira reflete essa influência, traduzindo-a num programa inovador ao mesmo tempo que revela uma grande sensibilidade para com o território e as suas comunidades.

Para o fim deixei os dois envelopes. Um continha negativos, o outro provas fotográficas de contacto.

As imagens captadas na visita de estudo ao terreno não focam apenas o lugar. Mas também o resto da Aldeia e os olhares de crianças que, provavelmente, nunca antes tinham visto um Kodak. Seria interessante, resgatar estas imagens do arquivo e levá-las até Monforte dando a ver a septuagenários o seu rosto de menino.

É oportuno, também, conjeturar sobre o que teria sido Monforte caso o projeto tivesse visto a luz do dia.

Nas duas décadas que se seguiram, a população de Monforte caiu para metade. À data do projeto Monforte teria uns 2300 habitantes. Hoje são 320. Será que este equipamento teria contribuído para estancar parte deste êxodo?

E que impacto poderá ter tido na região? Será que o projeto, mesmo não construído, pode ter influenciado o programa de outros Centros Paroquiais, como o de Janeiro de Cima ou Almaceda ambos construídos nos anos 60? E viria a ter pontos de contacto com o Centro Paroquial da Boidobra, projeto que NPT viria a fazer nos anos 70?

Para mim este achado tem-se revelado um ponto de viragem na minha investigação.

Mais do que um projeto não construído, encontrei um testemunho do empenho e da visão de NTP – a arquitetura enquanto motor de desenvolvimento social e cultural – mesmo nos recantos mais longínquos do nosso país.

Para terminar, reforço a urgência e necessidade de continuar a estudar, digitalizar e difundir este espólio, sob pena de obras com a mesma relevância permanecerem desconhecidas durante décadas, privando-nos de uma compreensão mais completa da sua obra e do seu impacto.

Com mais tempo, revisitarei o projeto no Forte de Sacavém. E tudo farei para o divulgar junto das gentes de Monforte. Talvez ainda ali encontre o olhar daqueles meninos.

João Pedro Dias

Janeiro de 2025