
Quando o director amigo me pediu a autobiografia, fiquei hesitante, mas ao ler a do Listopad entusiasmei-me e, pegando-lhe na palavra, agarro na caneta e começo a escrever – pois sou um analfabeto do século XXI. Fazendo anos por estes dias, sou dos mais velhos nascidos em 22, o mesmo ano de José Saramago, Manuel Taínha, José-Augusto França, Ribeiro Teles e Adriano Moreira.
Nasci e cresci no bairro da Estrela/Lapa, no seio de uma família burguesa ligada aos seguros e ao comércio, proprietária de uma empresa de vinhos com armazéns no Ginjal que, depois de fazer dois séculos (fora fundada em 1797), fechou as suas portas. Gente conhecida no meio empresarial, honrada e de costumes austeros.
Meu avô João, director do Banco de Portugal, quando um governo da I República mandou que se imprimissem mais notas para cobrir o défice, recusou e bateu com a porta. Meu pai, a quem os empregados tratavam carinhosamente por Patrão Luís, tinha espírito associativo, foi Presidente da Câmara de Almada e fundador da primeira Caixa Sindical de Previdência quando o irmão Pedro, amigo de Marcelo Caetano, fundou o regime corporativo. Em 1933 acompanhei meus pais a votar a Constituição do Estado Novo, com uma simbólica camisa azul, a cor do Nacional-Sindicalismo de Rolão Preto, que Salazar reprimiu.
Lembro-me da Revolução do 7 de Fevereiro de 27, a primeira contra a ditadura, com as portadas das janelas fechadas e a ouvir o crepitar das metralhadoras nos combates do Rato. E também da crise de 29, que levou à falência uma fábrica de conservas em Portimão do que resultou que, à sobremesa, se partissem as bananas ao meio – metade para cada um dos seis filhos.
A meu pai devo o grande amor que tenho por Lisboa. Dávamos grandes passeios aos domingos (antes dos de José Régio). De eléctrico até ao fim das linhas, prosseguíamos depois a pé, galgando uma vez a serra de Monsanto, então despida de vegetação, desde Belém até Benfica.
A família era católica e monárquica, porém com antepassados liberais. O avõ de minha mãe Alice, o conselheiro Nicolau Anastácio de Bettencourt – com nomes de rua em Angra e Praia da Vitória – desembarcou no Mindelo, alistado no Batalhão Académico de Coimbra. Meu trisavô paterno, de apelido Herrmann (pai do introdutor do telefone em Portugal), foi um militar prussiano que combateu ao lado de D. Pedro IV. É desta linhagem ancestral que ideologicamente me reclamo, em oposição à mais recente. Mas a transição da Direita para a Esquerda foi gradual, tendo começado por tirar o h de Theotónio, que achava pedante. Aluno do Liceu Pedro Nunes, convivia mais facilmente com os colegas de famílias remediadas do que com a rapaziada da burguesia rica (como os Nobre Guedes). Filiei-me nos escuteiros e, aos 14 anos, quando foi criada a Mocidade Portuguesa, logo me alistei como voluntário, pois gostava de fardas e paradas militares. No início de 1937, meses depois de declarada a Guerra Civil de Espanha, fiz parte de um longo comboio de caminhões que, comandado pelo célebre major Botelho Moniz, levou a Sevilha mantimentos para as tropas franquistas. Estreei aí a Voigtlander que meu pai me oferecera, com a qual fui fazendo fotografias nos anos seguintes e que estiveram há meses em exposição na Galeria Diferença.
No Pedro Nunes tive a sorte de ter por companheiro de carteira o Carlos Manuel, filho de um conhecido arquitecto – Carlos Ramos, fundador mais tarde da chamada da Escola do Porto, que ganhou prestígio internacional. Foi ele que me levou para Arquitectura, onde o 1º ano do curso tinha, em 1939, quando rebentou a 2ª Guerra, apenas 11 alunos. Com eles aprendi muita coisa (Manuel Taínha, Costa Martins, Vítor Palla, Alzina de Menezes, entre outros).
Frequentei então aulas, como aluno livre, no hoje ISEG, no Centro de Estudos Geográficos com Orlando Ribeiro e o 1º Curso de Arquitectura Paisagista com Caldeira Cabral. Fiz a tropa da Administração Militar, na Póvoa do Varzim, e no Lumiar, onde aprendi a cavalgar e fiquei a saber que, entre os recrutas de famílias operárias havia inteligências brilhantes que se ficavam, quando muito, pela 4ª classe, e com quem também muito aprendi sobre a realidade social do país. Sou, por isso, contra a extinção do SMO (Serviço Militar Obrigatório). No auge do poderio nazi, embora meu pai fosse anglófilo, tive dois anos de aulas de alemão, pois esta ia ser a língua do futuro (Zukumft).
Ainda antes de diplomado, arranjei emprego na Câmara Municipal de Lisboa, na construção do Bairro de Alvalade, como assistente do arquitecto Miguel Jacobetty, que deu o nome ao Bairro de S. Miguel, onde ainda moro. Em 48, enquanto montava o primeiro atelier, entrei para o Serviço de Habitações Económicas da Previdência, onde me mantive durante 22 anos, adquirindo uma vasta experiência nesse campo e participando em congressos internacionais, um deles em Cuba, ouvindo Fidel e o Che, e de onde regressei com barba.
Foi ali que conheci minha primeira mulher, Maria Natália Duarte Silva, pessoa de extraordinárias qualidades e que contribuiu decisivamente para a minha formação, falecida tragicamente aos 40 anos, quando nascia, já morta, a filha Catarina, a que se tinham antecedido Luísa, Miguel e Helena.
Desde cedo, apaixonei-me pelo território, percorrendo o País e a raia espanhola com familiares ou amigos, atravessando serranias e deslumbrando-me com as paisagens, sempre nos carros mais baratos do mercado (joaninhas, carochas, minis e 4L) e percorrendo estradas esburacadas e poeirentas. Uma vez, na Beira Interior, imobilizado por uma avaria, o carro foi reparado na única oficina que havia nas redondezas – uma oficina de ferrador.
Envolvidos cada vez mais na oposição à ditadura e depois à guerra colonial, no seio dos católicos ditos progressistas, participámos activamente em publicações clandestinas, na cooperativa PRAGMA e na Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos. Comprámos por oito contos uma casa de férias quinhentista em Marvão, a partir da qual guiávamos jovens que atravessavam clandestinamente a fronteira, por se recusarem a ir para a guerra. Vetos da Pide impediram-me de ser docente de Arquitectura e membro da direcção do então Sindicato dos Arquitectos. Fui preso pela Pide quatro vezes, a última das quais em Novembro de 73, e dessa vez torturado, sendo libertado com o 25 de Abril, envolvendo-me então no MES e participando activamente no PREC. Desliguei-me entretanto da Igreja, embora aí conserve profundas amizades, por ter chegado à conclusão de que o que me motivava eram causas sociais e políticas, sem qualquer relação com o sobrenatural.
O Atelier desenvolve-se ao longo de 60 anos, com encomendas importantes de que resultaram projectos premiados, tendo como sócios, sucessivamente, Costa Cabral, Nuno Portas e Pedro Botelho, que agora ainda me acompanha. Estes e outros mais têm sido, ao mesmo tempo, discípulos e mestres.
Em 1980 fiz uma grande viagem às cidades históricas do Brasil, apaixonando-me por esse país e também por Irene Buarque, artista plástica que se fixara em Portugal e minha actual mulher, fundadora da Cooperativa Diferença e com quem já tinha partilhado e continuo a partilhar projectos comuns.
Politicamente, participei no lançamento do Bloco de Esquerda (BE), mas afastei-me desse partido por não ser capaz de se desembaraçar de heranças obsoletas, sendo hoje militante do que desejo seja um novo PS, onde me inscrevi a seguir às últimas eleições.
Como cidadão, continuo a ser interveniente, tendo-me associado aos protestos contra a invasão criminosa do Iraque, que já causou – por mãos humanas ditas civilizadas ou “ocidentais” – quase tantos mortos como o maremoto da Ásia. Escrevi, a este propósito, uma Carta ao Director do meu jornal habitual, que não foi publicada. Nela afirmava que todos os que tentaram justificar essa guerra e a atiçaram têm “as mãos sujas de sangue”, ao recusarem-se a reconhecer os seus erros ou embustes.
Tenho ainda criticado a farsa irresponsável da chamada “descentralização”, que dividiu o país em cacos, à mercê de bairrismos exacerbados e de jogadas partidárias. Serão esses cacos que o próximo governo deverá unir, para se organizarem as regiões administrativas – única solução para conciliar a cada vez mais necessária descentralização com os interesses nacionais.
Profissionalmente, depois de ter assumido durante anos responsabilidades associativas e continuando a defender o Direito à Arquitectura para todos, sinto-me hoje muito atraído para o que se chama Arquitectura do Território, tendo-me envolvido muito no Programa POLIS da Covilhã. Convidam-me agora, com frequência, para conferências, aulas, colóquios, exposições e artigos. Mas gostava que continuassem a encomendar-nos projectos, visto que os arquitectos, enquanto têm vida e saúde, não se reformam.
Publicado em JL: Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 895, 19 jan.-1 fev. 2005, p. 44 e republicado em JL: Jornal de Letras, Artes e Ideias em 3-16 fev. 2016, p. 32
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