1. Em apoio às tropas de Franco
A 18 de Julho de 1936, com o levantamento militar contra a República da Frente Popular chefiado por Franco, foi desencadeada a guerra civil de Espanha, acontecimento que rapidamente ganhou importância internacional e que, de algum modo, antecipou a 2ª guerra mundial.
Com 14 anos, e tendo-me alistado voluntariamente na Mocidade Portuguesa com todo o entusiasmo logo no momento da sua criação em Maio, apaixonei-me, acompanhando meu Pai, pela causa nacionalista. Ouvíamos sofregamente todas as noites o noticiário do Rádio Clube Português, dirigido pelo major Botelho Moniz, fervoroso adepto do “alzamiento nacional”. Amante da geografia, arranjei rapidamente um mapa da Península, onde ia registando os avanços das colunas franquistas na direcção de Madrid (tal como haveria de fazer nos anos 40 – mas dessa vez partidário dos aliados – com um grande mapa da Europa).
Gorada a rápida conquista de Madrid devido a uma tenaz resistência, reforçada com o armamento de civis e a acção das Brigadas Internacionais, as frentes de guerra estabilizaram-se e o desfecho do conflito afigurava-se incerto. Entretanto, a ofensiva nacionalista a partir de Sevilha para o Norte, ao longo da fronteira portuguesa, lograva estabelecer ligação com as forças rebeldes que desde o início tinham dominado a região de Leão e o norte de Castela, com base em Salamanca. Tudo isso com a cumplicidade activa do governo de Salazar. Acontecimento emblemático dessa ofensiva, liderada pelo general Yague e corporizada por tropas mouras e da Legião Estrangeira que tinham vindo de Marrocos, foi o massacre de resistentes republicanos na praça de touros de Badajoz, testemunhada por Mário Neves, jornalista do Diário de Lisboa e que a censura deixou publicar por negligência.
Foi neste quadro que tomou corpo uma iniciativa do mesmo Botelho Moniz – irmão do futuro general Júlio, que tentou em 1961, no início da rebelião em Angola, opor-se à política colonialista de Salazar, e por isso logo demitido. Tratava-se de organizar uma grande coluna de camiões até Sevilha para levar mantimentos às tropas franquistas.
Com alguns colegas, logo participei na organização de uma equipa no Liceu Pedro Nunes, com o fim de nos incorporarmos na iniciativa. Com a ajuda de meu Pai, contactámos várias empresas e entidades para a obtenção de géneros, que nos eram concedidos para o efeito. Lembro-me de sacos de café e de arroz, de latas de conservas e até de umas grandes embalagens de chá, oferecidas pela então Companhia da Zambézia.
Foi assim que em Janeiro de 1937 dezenas de camiões de carga atravessaram o Tejo nos ferry-boats da Parceria dos Vapores Lisbonenses e se puseram a caminho do Alentejo a partir de Cacilhas. Botelho Moniz, com a sua característica boina basca, comandava as operações.
A primeira noite foi passada num celeiro cheio de fardos de palha na então Aldeia Nova de S. Bento (hoje Vila), entre Beja e a fronteira de Ficalho. Lembro-me de ter passado sobre a velha ponte do Guadiana, antes de Serpa, e a surpresa de ver um único tabuleiro simultaneamente para os carros e a via férrea. Passada a fronteira, fomos recebidos em triunfo em Rosal de la Frontera – o que depois se repetiu nas sucessivas povoações até Sevilha. Havia mulheres que nos abraçavam e ofereciam bebidas. Nada sabíamos sobre o massacre de Badajoz e os ferozes combates que tinham ocorrido nessas paragens poucos meses antes.
Em Sevilha ficámos alojados principescamente em palácios da aristocracia espanhola, tendo gozado durante alguns dias as belezas da capital andaluza: a imponente Plaza de España, construída quando da exposição internacional de 1929, o típico bairro de Triana, a Torre del Oro, na margem do Guadalquivir, e a catedral com a torre Giralda.
Nessas deambulações, confraternizámos com grupos de soldados do exército italiano e de oficiais da Luftwaffe, que Mussolini e Hitler tinham enviado para Espanha e que foram decisivos para a vitória franquista. Mal sabíamos que os últimos viriam a estar entre os autores do dramático bombardeamento de Guernica, a histórica capital do País Basco, depois imortalizado com o quadro de Picasso. E também ficámos fascinados com o salero das guapas andaluzas, com quem nos cruzávamos na Calle Sierpes e a quem dirigíamos piropos – uma prática divertida, desconhecida em Portugal.
Depois de termos assistido a um entusiástico comício na Praça do Ayuntaniento para ouvir as tiradas enfáticas do General Queipo de Llano, agradecendo a generosidade de “nuestros hermanos de Portugal”, rumámos a Lisboa, cheios de convicção, para relatar a amigos e familiares os empolgantes dias que tínhamos vivido. E não perdíamos uma ocasião para cantarmos o hino da Falange, que ficámos a saber de cor: “Cara al Sol, com la camisa nueva…”
2. No Pais Basco subjugado
No verão de 1938, tinha então 16 anos, quando a guerra civil ainda estava para durar, nova viagem à Espanha nacionalista. Desta vez, a convite de meu Tio Pedro, cujas credenciais como embaixador tinham acabado de ser aceites pelo governo de Franco (anteriormente era “delegado especial”, visto que o governo franquista, já reconhecido por Salazar, ainda não o tinha sido pela comunidade internacional).
Sediado em Burgos, já que a rendição de Madrid viria a ocorrer apenas no final da guerra, o corpo diplomático junto de Franco (em que os representantes da Itália fascista e da Alemanha nazi já tinham a designação de embaixadores), decidiu retomar o velho hábito da corte espanhola de passar as férias na estância balnear de San Sebastian.
Meu Tio tinha um filho, alguns anos mais novo do que eu, e achava que eu era uma boa companhia para o primo Pedro. Foi assim que ambos embarcámos no velho Sud-Express, juntamente com minha Avó Virgínia, rumo ao País Basco, que havia sido conquistado por Franco há um ano atrás. Impressionou-me o aspecto lúgubre e decadente das estações em que o comboio ia parando, em que uma sineta de tom triste substituía o apito do chefe da estação usado nos nossos caminhos de ferro. Eram tempos de guerra, com faltas de energia eléctrica e racionamento de géneros às populações.
Passei a longa viagem a cair de sono, enroscado no banco do compartimento, enquanto minha Avó, ciosa da sua austera educação germânica, se mantinha rigorosamente aprumada no seu assento.
Deslumbrei-me com a cidade e a paisagem circundante: a formosa baía em concha, o Monte Igueldo, Ondarreta e os arredores verdejantes em pleno verão. Ficámos alojados, como não podia deixar de ser, no Grande Hotel, então mostrando um aspecto decadente, devido às restrições da guerra. Fizemos passeios pelo País Basco: Bilbau, Zarauz, Portugalete e o encantador porto de Pasajes. Fomos até à fronteira francesa, atravessando o rio Bidassoa, e visitando Hendaia e Biarritz, esplendorosas de cosmopolitismo nas vésperas da 2ª guerra mundial e de onde trouxemos coisas que escasseavam em Espanha. E ainda Irun, último bastião da resistência basca, em que fotografei prédios em ruínas. Um outro Tio meu, Henrique Nunes da Silva, que tinha sido cônsul em San Sebastian, chamou-me a certa altura a atenção para a conversa de dois homens na rua que falavam, em voz baixa, uma linguagem ininteligível. Estão a falar em língua basca, euskera, disse-me ele – proibida pelo regime de Franco, assim como o foram o catalão e o galego.
Certo dia, meu Tio Pedro recebeu um telefonema que o deixou alterado: dois oficiais portugueses tinham sido mortos na frente de Aragão. Tratava-se da última e desesperada ofensiva do exército republicano contra as tropas de Franco e que deu lugar à encarniçada batalha do Ebro, que durou várias semanas. A participação portuguesa no exército nacionalista teve como principal núcleo uns tantos voluntários com o nome de “viriatos”. Mas, além disso, havia oficiais de carreira a combater nas tropas franquistas. Perante o infausto acontecimento, meu Tio resolveu ir a Saragoça, num preito de homenagem aos falecidos. E lá fomos, atravessando as longas estradas de Navarra e Aragão, durante um dia inteiro de marcha.
Depois, foi o regresso a Lisboa para o recomeço das aulas, com uma grande admiração pelos boinas vermelhos – os “requetés”, tradicionalistas navarros – mas mais ainda pelo espírito revolucionário das JONS – Juventudes Obreras Nacional – Sindicalistas, da Falange Espanhola de José Antonio Primo de Rivera, fuzilado em Alicante nos primeiros meses da guerra.
3. Depois da derrota da França
No verão de 1940, novamente a convite de meu Tio Pedro, mais umas férias em Espanha. A guerra civil havia terminado na Primavera do ano anterior com a vitória de Franco e logo a seguir, a 1 de Setembro, eclodia a 2ª guerra mundial.
Desta vez, meu Tio, já instalado em Madrid no elegante bairro de Salamanca, mandou a Lisboa o potente Chrysler da Embaixada para nos levar. Mas, além do motorista, de nome Rafael, havia um outro passageiro: o agente da Pide (então PVDE) que exercia as funções de correio diplomático. Não recordo pormenores da viagem, que demorou um dia inteiro. Mas não esqueci que, de vez em quando, o agente mandava parar o carro, saía, e sacava fotografias. Vim depois a saber quem era: nada menos do que o tristemente famoso Rosa Casaco que, em 1965, chefiou a brigada da Pide que assassinou Humberto Delgado e que era um conceituado fotógrafo. Meu companheiro de viagem!
Pouco tempo estivemos na capital, pois as férias seriam novamente passadas em San Sebastian, tanto mais que iria realizar-se aí um Congresso Luso-espanhol para o Progresso das Ciências. Mas não deixei de me admirar com a grandeza da capital espanhola e com a imponência da sede da Telefónica, então o mais alto edifício da Península. E também pude ver as ruínas da Cidade Universitária com as paredes cravejadas de balas, que constituíram durante três anos a primeira linha da defesa de Madrid.
A situação havia mudado por completo. As tropas de Hitler tinham ocupado todo o litoral francês até à fronteira com a Espanha. Viam-se militares alemães de licença, passeando com magnificas máquinas fotográficas. Também eu fiz fotografias com a minha Voitglander Relex da encantadora cidade antiga e do Kurshall. E relembrei uma conversa com meu Tio em Lisboa, pouco tempo antes, sobre o cônsul português em Bordéus que estava a distribuir autorizações de entrada em Portugal aos fugitivos da invasão hitleriana. Salazar mandou-o a Baiona “para meter o cônsul na ordem”, e ele assim o fizera. Tratava-se de Aristides de Sousa Mendes, compelido de imediato a regressar a Portugal e logo demitido e ostracizado, depois de ter destemidamente salvado a vida a dezenas de milhar de judeus, desobedecendo às ordens do ditador.
Nas minhas travessias de Espanha deparei com aspectos altamente contrastantes com o que conhecia de Portugal e que me mostravam um país muito mais desenvolvido. Desde logo a largura das estradas, que permitia os cruzamentos com toda a facilidade, enquanto que aqui era preciso um carro encostar-se perigosamente à berma para o que vinha em sentido contrário poder passar. Também nas povoações e pequenas cidades admirava a frequência de ruas amplas e prédios de andares, quando as nossas cidades de província só tinham casas baixas, ladeando ruas tortuosas e estreitas. E ainda a abundância de docas e até portos artificiais em pequenas povoações do litoral – Lequeitio, Ondarrua, Fuenterrabia. Quando nada disso existia na Caparica e em Sesimbra, Cascais, Ericeira ou Nazaré, em que os barcos de pesca varavam na areia e eram depois puxados por juntas de bois ou grupos de pescadores. Enfim, aquilo a que se chamava a grandeza de Espanha face ao nosso Portugal primitivo, pequeno e pobre.
Foi ainda nesta viagem que, já dotado de alguma curiosidade intelectual e interessado pelas letras através do convívio com colegas de Belas Artes, como Vítor Palla e Costa Martins, iniciei as minhas leituras de poetas espanhóis. Com surpresa comprei um livro de Antonio Machado e o Romancero Gitano de Lorca, poetas proscritos pelo franquismo triunfante, mas mesmo assim à venda – o primeiro, exilado em França e o último assassinado no início da guerra civil na sua Granada. E ainda um outro do grande sábio Gregório Marañon sobre sexualidade, matéria que estava a interessar-me. Esta apetência pela cultura espanhola prosseguiu d’ai para a frente e recebeu novo impulso com as conferências de Ortega y Gasset, que se refugiara em Portugal por volta de 1941 e que fui ouvir a conselho de meu primo Vitorino Nemésio, tendo-me impressionado muito o seu livro “La Rebelion de las Masas”.
Entretanto, regressado a Lisboa, fazia gala na fluência do meu castelhano.
Documento impresso, 2008, inédito.