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A Igreja do Sagrado Coração de Jesus de Nuno Teotónio Pereira e Nuno Portas

Foto: Miriam Ruiz-Iñigo

Pode um edifício conter muitos outros edifícios? Do ponto de vista físico, a resposta mais imediata seria que não, uma vez que o lugar ocupado por um determinado edifício não pode ser ocupado simultaneamente por outra construção (se bem que edifícios como a Catedral de Siracusa ou a Mesquita de Córdoba desafiam este pressuposto).

Mas, por outro lado, é possível, ao percorrer um determinado espaço, sentir que a essência de outras arquitecturas está ali presente. Foi essa a sensação que tive quando entrei pela primeira vez na igreja do Sagrado Coração de Jesus, em Lisboa, de Nuno Teotónio Pereira e Nuno Portas. Trata-se de uma perceção completamente subjectiva, provavelmente condicionada pelo meu percurso pessoal e também pela minha compreensão da arquitetura. A visita ao edifício foi uma experiência excitante e reveladora, porque embora conhecesse já o projeto, não tinha tido a oportunidade de o visitar até àquele momento.

A primeira coisa que me chamou a atenção foi o controlo da escala. O projeto resolve de forma inteligente a diferença de cota entre as ruas paralelas, articulando um interessante percurso de ligação que atravessa o pátio central aberto, em torno do qual se organiza o edifício. A fragmentação do programa e o desenho cuidadoso das plataformas a diferentes níveis tornam a relação com a envolvente mais agradável, gerando uma nova paisagem urbana.

Esta fragmentação por planos de betão na fachada fez-me lembrar o National Theatre de Denys Lasdun, em Londres, que, embora numa escala muito maior, utiliza uma estratégia semelhante para diluir a presença urbana do edifício, reduzindo a força da sua volumetria. Ambos os edifícios partilham também a torção wrightiana que ocorre no piso térreo para dar acesso aos dois complexos, elevado no caso de Lisboa e ao nível da rua no caso de Londres, favorecendo a apropriação destes espaços pelos cidadãos.

A fachada neutra do volume da igreja, com o seu padrão regular e abstrato, fez-me lembrar a Beineke Library de Gondon Bunshaft em New Haven e a pele etérea que cobre a grande caixa que dá forma ao edifício, que segue um padrão muito semelhante. No entanto, nesta última, a escolha de um material permeável à passagem da luz condiciona a perceção do espaço interior, enquanto na igreja a rutura exterior não se reflecte no interior.

No interior da igreja, as telas interiores nuas de blocos de betão lembram as da igreja do arquiteto Aarno Ruusuvuori em Tapiola, que são activadas ao longo do dia pelas sombras que lhes são projectadas pela grande clarabóia da fachada principal em dias de sol. No caso do Sagrado Coração, no entanto, a abordagem é mais elaborada, combinando uma expressiva iluminação zenital da zona do altar, característica das igrejas católicas, com entradas de luz sob a forma de elementos verticais, cuja luz, muito mais filtrada e difusa, me transportou para a igreja Kaleva, projectada pelo casal Pietilä, na cidade finlandesa de Tampere. Aí, a luz escandinava inunda o interior, sublinhando a imponente verticalidade da nave. No entanto, o carácter do espaço da igreja de Lisboa, muito mais denso e cheio de mistério, aproxima-se mais da atmosfera interior da expressiva Catedral de Neviges de Gottfried Böhm.

Olhar para o telhado da igreja é sinónimo de ritmo e ordem. Aí, a estrutura de betão bidirecional do telhado é exposta para o interior, criando uma sensação interessante e aparentemente contraditória de peso e leveza. Também Kahn utiliza esta ideia de ordem nas lajes que separam os pisos da galeria de arte da Universidade de Yale, gerando uma grelha exposta que gravita sobre cada sala, unificando o espaço. Em ambos os casos, a capacidade expressiva da estrutura é explorada através da forma e do material.

Apesar da escala monumental da igreja, o interior é um espaço muito controlado, e é surpreendente que uma sala desta dimensão seja tão acolhedora. Provavelmente, tem a ver com a decisão de utilizar a madeira como material para tudo o que tem a ver com o terreno: o chão que pisamos, o banco onde nos sentamos durante a cerimónia, o corrimão onde a nossa mão se apoia quando subimos ou descemos as escadas.

Foto: Miriam Ruiz-Iñigo

As paredes de blocos de betão que delimitam o espaço sagrado fizeram-me lembrar a igreja de Nossa Senhora dos Pobres de Figini e Pollini, em Milão, onde os arquitectos se empenharam firmemente na purificação do espaço, numa demonstração de sinceridade construtiva que também está presente na igreja de Lisboa.

No interior da nave, pilares esguios sobem elegantemente até ao teto, cuja delicada cofragem esculpe o betão como se fosse pedra, evidenciando extrema atenção ao detalhe. A sua execução impecável fez-me lembrar a torre sineira do Santuario de la Virgen del Camino em León, do arquiteto dominicano Fray Coello de Portugal, cuja esbelteza ainda desafia o horizonte, mais de meio século após a sua construção.

Finalmente, no pátio exterior, a forma como se articulam as ligações entre os diferentes níveis fez-me pensar nas escadas refinadas e elegantes de Scarpa em Veneza. É verdade que a sua forma não é tão delicada como a do arquiteto italiano, mas, na essência, há um desejo comum de valorizar o percurso e de gerar enfiamento visuais que enriquecem a perceção espacial.

Algumas das obras referidas são anteriores, outras posteriores ou mesmo simultâneas à Igreja do Sagrado Coração. Pouco importa. O objetivo deste artigo não é traçar possíveis referências ao projeto, mas a partir dele apresentar um mosaico de experiências pessoais. Tal como um determinado cheiro nos pode transportar no tempo, a capacidade evocativa de um espaço pode levar-nos a muitos outros lugares. As reflexões aqui apresentadas baseiam-se em afinidades particulares moldadas ao longo do tempo. Um outro olhar pode apontar para novas interpretações. É precisamente esse o valor da boa arquitetura, o ser capaz de gerar diferentes leituras em quem a experiencia. O que é certo é que ninguém sairá indiferente deste espaço mágico que Nuno Teotónio Pereira e Nuno Portas ofereceram à cidade de Lisboa, há mais de cinquenta anos.

Miriam Ruiz-Iñigo
Janeiro de 2024

 

LA IGLESIA DEL SAGRADO CORAZÓN DE JESÚS EN LISBOA DE NUNO TEOTÓNIO PEREIRA Y NUNO PORTAS

¿Puede un edificio contener muchos otros edificios? Si nos referimos al punto de vista físico la respuesta más inmediata sería que no, ya que el lugar que ocupa una edificación concreta no puede ocuparse simultáneamente con otra construcción (aunque bien es cierto que edificios como la Catedral de Siracusa o la mezquita de Córdoba desafían esa afirmación).

Pero por otro lado es posible, al recorrer determinado espacio, sentir que allí está presente la esencia de otras arquitecturas. Esa es la sensación que tuve la primera vez que entré en la iglesia del Sagrado Corazón de Lisboa de Nuno Teotónio Pereira y Nuno Portas. Es ésta una percepción plenamente subjetiva, condicionada probablemente por mi bagaje personal y también por mi forma de entender la arquitectura. Recorrer el edificio fue para mí una experiencia emocionante y reveladora, ya que a pesar de que conocía los planos del proyecto, no había tenido ocasión de visitarlo hasta aquel momento.

Lo primero que me llamó la atención fue el control de la escala. El proyecto resuelve de forma inteligente el salto de cota entre las calles paralelas articulando un interesante recorrido de conexión que atraviesa el patio abierto central alrededor del cual se organiza el edificio. La fragmentación del programa y el cuidado diseño de las plataformas a distintos niveles amabilizan la relación con el entorno generando un nuevo paisaje urbano.

Esa fragmentación por planos de hormigón en fachada me recordó al Teatro Nacional de Londres de Denys Lasdun, que, aunque de escala mucho mayor, se sirve de una estrategia semejante para diluir la presencia urbana del edificio restándole contundencia a su volumetría. Ambos edificios comparten también el giro wrightiano que se produce en planta para provocar el acceso a ambos complejos, elevado en el caso lisboeta y a cota de calle en el londinense, favoreciendo la apropiación de estos espacios por parte de los ciudadanos.

El neutro despiece de fachada del volumen de la iglesia, de trama regular y abstracta, me hizo pensar en la Biblioteca Beineke en New Haven, de Gondon Bunshaft y en la etérea piel que recubre la gran caja que da forma al edificio, que sigue una trama muy similar. Sin embargo, en ésta la elección de un material permeable al paso de la luz condiciona la percepción del espacio interior, mientras que en el templo el despiece exterior no tiene reflejo en el interior.

Foto: Miriam Ruiz-Iñigo

Una vez en el interior de la iglesia, los desnudos lienzos interiores de bloque de hormigón trajeron a mi memoria los de la iglesia de Tapiola de Aarno Ruusuvuori, que se activan a lo largo del día con las sombras que sobre ellos se proyecta desde el gran lucernario de la fachada principal los días de sol. Sin embargo en el caso del Sagrado Corazón el planteamiento es más elaborado, combinando una expresiva iluminación cenital de la zona del altar propia de las iglesias católicas con entradas de luz a modo de rasgos verticales, cuya luz mucho más tamizada y difusa me transportó a la iglesia Kaleva obra del matrimonio Pietilä en la ciudad finlandesa de Tampere. Allí la luz escandinava inunda el interior subrayando la imponente verticalidad de la nave. Sin embargo el carácter del espacio de la iglesia lisboeta, mucho más denso y cargado de misterio, se acerca más a la atmósfera interior de la expresiva catedral de Neviges de Gottfried Böhm.

Elevar la mirada hacia el techo de la iglesia es sinónimo de ritmo y orden. Allí la estructura de hormigón bidireccional de la cubierta se deja vista al interior generando una interesante y aparentemente contradictoria sensación de peso y ligereza. Kahn recurre también a esta idea de orden en los forjados que separan las plantas de la galería de arte de la Universidad de Yale, generando una trama vista que gravita sobre cada sala unificando el espacio. En ambos casos se aprovecha la capacidad expresiva de la estructura a través de la forma y del material.

A pesar de la escala monumental de la iglesia el interior es un espacio muy controlado, y sorprende que una sala de ese tamaño resulte tan acogedora. Probablemente tenga que ver con la decisión de utilizar la madera como material para todo aquello que tiene que ver con lo terrenal: el suelo sobre el que caminamos, el banco en el que nos sentamos durante la ceremonia, la barandilla sobre la se apoya nuestra mano al subir o bajar escaleras.

Los muros del bloque de hormigón con los que se delimita el espacio sagrado me remitieron a la iglesia de nuestra Señora de los Pobres en Milán de Figini y Pollini, donde los arquitectos hacen una decidida apuesta por la depuración del espacio en un alarde de sinceridad constructiva que está también presente en la iglesia lisboeta.

En el interior de la nave unos esbeltos pilares se alzan elegantemente hacia el techo, cuyo delicado encofrado esculpe el hormigón como si fuera piedra, poniendo de relieve un extremo el cuidado por el detalle. Su ejecución impecable me recordó a la torre del campanario del Santuario de la Virgen del Camino en León del arquitecto dominico Fray Coello de Portugal, cuya esbeltez desafía aún hoy el horizonte más de medio siglo después de ser construida.

Finalmente, en el patio exterior la forma de articular las conexiones entre los distintos niveles me hizo pensar en las refinadas y elegantes escaleras de Scarpa en Venecia. Bien es cierto que su forma no es tan delicada como las del arquitecto italiano, pero em esencia se vislumbra una voluntad común poner en valor el recorrido y por generar visuales que enriquecen la percepción espacial.

Algunas de las obras aludidas son anteriores, otras posteriores o incluso simultáneas a la iglesia del Sagrado Corazón. Poco importa. Lo que busca este escrito no es rastrear posibles referencias relativas al proyecto sino exponer un mosaico de vivencias personales. Así como un determinado aroma puede transportarnos en el tiempo, la capacidad evocadora de un espacio puede trasladarnos a muchos otros lugares. Las reflexiones que aquí se exponen se basan en afinidades particulares moldeadas a lo largo del tiempo. Otra mirada podrá apuntar nuevas interpretaciones. Ese es precisamente el valor de la buena arquitectura, que es capaz de generar lecturas diversas en aquel que las vive. Lo que es seguro es que nadie sale indiferente de este espacio mágico que Nuno Teotónio Pereira y Nuno Portas regalaron a la ciudad de Lisboa hace ya más de cincuenta años.

Miriam Ruiz-Iñigo
Enero de 2024