Arquitetura Formação

Por uma didática: a vida e obra de Nuno Teotónio Pereira

O grupo de estudantes e docentes no terraço da cobertura do Bloco das Águas Livres

Arquiteto e com ação em diversas outras áreas, Nuno Teotónio Pereira (1922-2016) foi, como temos vindo a por em evidência, um Homem Universal. Ávido na inquietude, intenso na discussão de ideias, intrépido pensador e dono de uma coragem invulgar, a sua personalidade funde-se com a sua obra, e o seu compromisso como cidadão interventivo e participativo está fortemente vinculado à sua arquitetura.

Tanto assim é que identificamos no seu percurso, entretecido por uma profícua produção no âmbito da habitação para o maior número, por um pensamento e ação crítica em torno de diversos temas (destaca-se em particular a sua participação no MRAR – Movimento de Renovação da Arte Religiosa), ou pela disponibilidade intelectual para fazer do seu atelier uma “escola” para refletir e agir, um pioneirismo inaudito e inspirador.

Para mais, a contemporaneidade da vasta obra de Nuno Teotónio Pereira (NTP) e a curiosidade e inventividade que dela emanam, aliada à sua vida de fazedor que sempre acreditou na possibilidade de um mundo melhor e de partilha constante, sintetizam bem a pertinência do seu estudo no âmbito da educação e formação em arquitetura. Tal como no seu atelier, procura-se formar os atuais estudantes com um sentido livre, digressivo e simultaneamente disciplinar incitando à curiosidade, à pesquisa, à exploração individual e à cooperação coletiva. São estes aspetos indissociáveis da vida e obra de NTP que, na Universidade de Évora, constituem parte de uma didática de iniciação à formação dos estudantes de arquitetura. A leitura que Nuno Teotónio Pereira fez da sua própria passagem pela Universidade de Belas Artes, onde cursou arquitetura – com os colegas alargou os seus interesses e a universidade transformou-o (1) – é disso exemplo.

Fig. 01 Trabalho de pesquisa gráfica e documental

Neste contexto, sob o mote Arquiteto e Arquitetura de Nuno Teotónio Pereira, e na continuidade do trabalho que tem vindo a ser desenvolvido no âmbito da unidade curricular de Projeto I e II do Mestrado Integrado do curso de Arquitetura da Universidade de Évora, propuseram-se, ao longo do primeiro semestre do corrente ano lectivo 2024/2025, um conjunto de atividades em torno da sua vida e obra.

Através de exercícios e de outras ações complementares – como da compreensão da arquitetura à sua representação, do desenho técnico à elaboração de maquetas, da leitura às sínteses escritas, das visitas a obras ao registo gráfico e escrito das experiências –, foi possível compreender a influência NTP na arquitetura em Portugal e, em paralelo, como a sua obra é relevante na introdução ao estudante dos instrumentos e modos de representação/comunicação de projeto e da cultura arquitetónica.

Distintas no propósito, na natureza e no modo de organização – individual ou coletivo – o corpo de atividades desenvolvidas neste semestre compreendeu, no essencial, um exercício, de que se transcreve o enunciado, enquadrado em outras atividades complementares.

1. Arquiteto e Arquitetura: Desenho (técnico) e Maqueta de obra do Arquiteto NTP

“Pretende-se com este exercício compreender a arquitetura e a sua representação/comunicação sob a forma normalizada de desenho técnico, utilizando projetos/obras de Habitação ou de dimensão e complexidade semelhante, na obra do arquiteto NTP. O exercício pressupõe as seguintes tarefas:

• Pesquisa e obtenção de cópias dos processos originais (peças escritas e desenhadas);
• Elaboração de redesenho de localização, plantas, cortes e alçados, em sala de aula, com acompanhamento dos docentes à escala 1:100;
• Elaboração de Maqueta à escala 1:50;
• Elaboração de Ficha síntese de acordo com template fornecido.”

Através de pesquisa documental em bibliotecas e arquivos, os estudantes iniciaram o seu primeiro contacto com a extensa obra de NTP. Por sua livre iniciativa, elaboraram uma linha cronológica ao longo dos 20m de comprimento da parede da sala de aula onde identificaram datas e obras significativas da sua vida. Ordenando e entrecruzando na ordem do tempo (e também do espaço) uma história de vida intensa, repleta de projetos, colaborações, iniciativas, participações e atividades, os quarenta e oito estudantes que compõem a unidade curricular de Projeto I estruturaram o percurso de uma vida ativa e preenchida.

Fig. 02 Elaboração da linha conológica sobre a parede da sala da unidade curricular de Projeto 1

Da primeira fase do exercício resultou a seleção do projeto a reproduzir: uma moradia unifamiliar em banda integrada no conjunto residencial do Restelo (2). A iniciação aos processos de representação e de comunicação em arquitetura utilizou assim os desenhos originais, que foram utilizados para o exercício da cópia que cada estudante concretizou individualmente. Entende-se a cópia como o redesenho consciente do projeto, explorando não só os instrumentos próprios como o desenho técnico (3) à mão, desencadeando-se, a partir dele, a introdução ao léxico/terminologia próprios da disciplina de arquitetura.

A segunda parte do exercício requereu a elaboração da maqueta desse projeto à escala 1:50 por grupos de cinco a seis estudantes. A construção implicou a ativação das competências de leitura, de interpretação e de descodificação dos desenhos técnicos de modo a que, a partir da sua representação bidimensional, os estudantes deduzissem a tridimensionalidade do objeto arquitetónico.

Fig. 03 Comentário e discussão sobre os desenhos técnicos produzidos pelos estudantes

Em ambas as tarefas deste exercício, que decorreram em simultâneo, exploraram-se conceitos fundamentais em arquitetura como espaço, medida, proporção, escala, geometria, luz e tectónica refletindo matérias fundamentais de iniciação à compreensão e construção do espaço.

Com o propósito de incentivar a pesquisa e fomentar a produção de sínteses escritas, os estudantes têm vindo a trabalhar sobre dois desdobráveis, em formato A5: um referente a uma ficha técnica síntese de uma obra de NTP selecionada pelos estudantes, e um outro desdobrável que incide sobre um dos temas propostos pelos docentes e que são: NTP e o Atelier na Rua da Alegria; NTP o homem de causas sociais; NTP e a arquitetura religiosa; NTP e os seus escritos; NTP e a atividade associativa; NTP e a habitação económica; NTP e a cidade; e, por fim, NTP: prémios e distinções.

Fig. 04 Discussão e crítica sobre as maquetas produzidas: compreensão e costrução do espaço

2. As visitas de estudo como ferramenta de aprendizagem em arquitetura

Outro dos objetivos da unidade curricular de Projeto I é aprender a partir da experienciação dos espaços, da apreensão multissensorial e fenomenológica que determinado lugar arquitetónico proporciona. As vivências que promovem, o ambiente ou atmosfera que encerram, a memória e o impacto que produzem é matéria fundamental da arquitetura.

Neste sentido, em complemento ao exercício prático elaborado em sala de aula, realizou-se com os estudantes (acompanhados dos docentes da unidade curricular) uma viagem de estudo a Lisboa em novembro de 2024. Foram visitadas duas das obras do arquiteto NTP: o Edifício de Habitação coletiva do Bloco das Águas Livres e a Igreja do Sagrado Coração de Jesus. Duas obras que, pela natureza distinta do seu programa, pela pesquisa e investigação a que obrigaram e pela excecionalidade e inventividade da sua expressão formal, material e tectónica encerram uma lição de arquitetura per se.

O Bloco das Águas Livres (4) (1953-5), em co-autoria com Bartolomeu Costa Cabral, propõe, do ponto de vista programático, das infraestruturas, da relação com a comunidade e com a cidade, um novo ideário. Distinto dos edifícios de habitação coletiva da época, o projeto visou a promoção de um novo sentido de comunidade desencadeando, simultaneamente, uma certa ideia de renovação e revitalização urbanística desta zona de Lisboa, à época parcamente desenvolvida e habitada. A visita teve início no piso da cobertura, onde foram abordados aspetos como a integração, a exposição solar do edifício, assim com a sua relação com a morfologia e topografia da cidade. Paralelamente, foi abordada a génese comunitária do edifício – um dos aspetos de maior inovação – a partir da experienciação dos diversos espaços comuns, em particular, da sala de festas e do terraço onde nos detivemos por algum tempo.

Paralelamente, os estudantes foram ainda desafiados (tirando partido das amplas vistas sobre Lisboa) a identificar edifícios notáveis e espaços públicos que integram a malha e composição da cidade. Do nível da cobertura a visita prosseguiu até ao 4º piso onde foi possível vivenciar os diferentes espaços que compõem uma das tipologias destinadas a habitação. Conceitos como escala, proporção, distribuição, matéria e luz foram abordados a partir desta experiência. Esta visita culminou no átrio de entrada e no espaço exterior, com os estudantes a desenharem diversos pontos de vista do edifício, assim como o seu enquadramento com o espaço público.

Fig. 05 Percurso pelo edifício e registo por meio de desenho de espaços e diversos pontos de vista

Com a visita à Igreja do Sagrado Coração de Jesus (ISCJ) (5) (1962-7) conheceu-se melhor a curiosidade e disponibilidade para ensaiar e explorar novas soluções espaciais e vivenciais no espaço urbano, em c-autoria com Nuno Portas, e colaboração de Pedro Vieira de Almeida, Luís Vassalo Rosa, Miguel Aragão e Duarte Cabral de Melo. A ISCJ é composta por vários corpos que se desenvolvem em distintos níveis, articulados por meio de um espaço central aberto que liga duas artérias da cidade desniveladas entre si – a Rua Camilo Castelo Branco e a Rua de Santa Marta. Este espaço central – praça que se abre à cidade – permite a extensão da rua e a criação de um espaço público no interior da parcela, rompendo e criando o vazio onde outros imaginariam uma massa edificada. Esta inovadora proposta gera assim um percurso ao mesmo tempo que produz espaços de estadia e de acesso a várias dependências que integram o programa da Igreja. Tal solução cumpre com o desejo dos arquitetos de projetar um lugar simultaneamente rico, diverso, inclusivo e aberto à cidade.

A visita orientada pelo assistente litúrgico Paulo José teve início no espaço que antecede a entrada na Igreja – pequeno adro – enquadrando os aspetos fundamentais de integração do conjunto da ISCJ e Centro Paroquial ao longo do tempo (a história que lhe deu origem, os detalhes do concurso, etc.) não deixando de aludir aos desafios que este conjunto edificado enfrenta na contemporaneidade.

Fig. 06 Visita orientada por Paulo José Lopes à Igreja do Sagrado Coração de Jesus

Após esta explanação introdutória, a visita prosseguiu pela Igreja – espaço de significativa proporção vertical e de luz cuidadosamente pensada – resultado da sobreposição de vários níveis a partir dos quais se organizam distintos espaços: a nave, o santuário, a cripta, as tribunas e os balcões e onde tem lugar excecional o santuário e o batistério.

A visita continuou pela capela lateral, pelos altares secundários situados por baixo do santuário, às sacristias, pelos cartórios e gabinetes e ainda pela capela mortuária, culminando o percurso no salão de festas, espaço de uso polivalente e atualmente disponível para acolher diversos eventos de iniciativa pública e privada.

Se a visita ao Bloco das Águas Livres procurou dar a conhecer o carácter inovador deste projeto no âmbito da habitação coletiva e no contexto da arquitetura moderna portuguesa, a Igreja do Sagrado Coração de Jesus pôs em evidência outras dimensões da arquitetura: a complexidade, intensidade, interioridade e dramatismo alcançados através da exploração da luz versus sombra, da geometria, do encaixe habilidoso de volumes (que acomoda um programa extenso) e do modo como este edifício constrói cidade são outra face da inestimável lição de arquitetura que nos propõe NTP e as suas obras, disponível para ser utilizada como recurso educativo.

3. Uma digressão pela vida e obra de NTP através de documentários

Desenvolver um trabalho com os estudantes a partir da vida e obra de NTP significa, entre outras dimensões, transmitir a natureza gregária da sua personalidade que “juntava pessoas, ideias e possibilidades” (6). O visionamento de duas produções audiovisuais sobre NTP – “Arquitectura: NTP, um programa de Manuel Graça Dias” (1993), e “Um Homem na Cidade” (2009) –, no Auditório da Universidade de Évora, com a colaboração do Prof. Luís Ferro (docente da Unidade Curricular da Organização do Espaço), foi outra das iniciativas promovidas no decurso do semestre I e que deu a conhecer a estudantes do 1º ano este espaço também ele educativo, e localizado no centro histórico. Este visionamento deu origem a uma breve conversa acerca do vasto curriculum do pensador, do lutador, de homem de ideias e ideais que foi NTP, tão inspirador, relevante e instrumental na formação de um arquiteto e na construção do seu percurso.

Fig. 07 Visionamento de produções audiovisuais sobre NTP seguido de uma conversa entre estudantes e docentes

…continuando

Objeto de ajuste e adaptação contínua, o programa da unidade curricular de Projeto I propôs explorar uma didática sustentada na persecução e na exploração de natureza teórico-prática de vários temas relacionados com a construção do espaço. Na universalidade e disponibilidade da vida e obra de Nuno Teotónio Pereira encontrou-se o pretexto para refletir e agir continuamente. Do interesse e entusiasmo dos estudantes resultou o desenvolvimento de competências, desde a criação de espírito de equipa à prática do desenho, da observação atenta à troca de experiências, da pesquisa direcionada e propositiva à síntese de elementos sobre uma obra de arquitetura. Razão porque no âmbito do ensino/aprendizagem em arquitetura é tão inspirador e instrumental partir do seu legado.

Marta Frazão, Sofia Aleixo e João Santa Rita
Docentes da Uc de Projecto do 1º ano do MIA da Univ. de Évora

Janeiro de  2025

(1) In “Um Homem na Cidade”: documentário
(2) A urbanização do Restelo, 1970, foi desenvolvida para a classe média e estrutura-se em quarteirões semi-abertos que integram duas tipologias distintas: moradias unifamiliares em banda e blocos multi-familiares.
(3) Acerca da representação do projeto, Peter Zumthor refere “que o desenho deve tornar mais clara a ausência do objeto arquitetónico real” remetendo para a importância do domínio das técnicas de representação em arquitetura.
(4) Classificado como Monumento de Interesse Público desde 2012.
(5) No ano de 1975 a Igreja é distinguida com o Prémio Valmor e é classificada como Monumento Nacional no ano de 2010.
(6) Transcrição do testemunho de João Seixas, 2022 in : https://nunoteotoniopereira.pt/testemunho/joao-seixas/