1. Maria Emília e Jorge Conceição
A nossa experiência, directa e pessoal, com a casa de Marvão – a casa então dita, pelos filhos, como a casa “da nossa mãe”, da Natália, pois toda a decoração era da sua autoria! – não a podemos dissociar de um pequeno/grande conjunto de eventos, vivências, solidariedades, cumplicidades: amizade, enfim!
Sinteticamente, da relação afectiva e amorosa, nascida entre nós, Maria Emília e Jorge, em Maio de 1971 (a dois meses do meu embarque para Moçambique), resultou a decisão da união conjugal que se materializaria em Dezembro desse ano, durante o curto período dumas férias da guerra, em Lisboa.
Sendo então ambos católicos praticantes, mas com conceitos e práticas que estavam cada vez mais em dissonância com aqueles que uma igreja conservadora teimava em continuar, negando todo o recente espírito conciliar e mantendo a tradicional Concordata assinada entre Portugal e o Vaticano, decidimos assumir na prática a distinção de conceitos do casamento civil e do casamento religioso, efectuando o contrato civil, em conservatória, a 17 de Dezembro e um ágape para-cristão a 26 de Dezembro.
Foi nesse curto período de férias que tudo foi discutido e preparado com o Nuno e dois ou três amigos, na sua casa em Lisboa. Aí, tendo em conta que os nossos amigos residiam sobretudo em Lisboa e no Porto, foi decidido efectuar uma ampla reunião em Coimbra com amigos e familiares. Foi sugerido, por nós, contarmos então com a presença amiga de um padre que todos admirávamos e com quem nos sentíamos em sintonia (o Frei Bento que, embora aceitando de imediato o nosso convite, acabou por não participar). Sublinhando a amizade que já nos unia e também com a Natália, falecida em Abril desse ano, o Nuno propôs-nos fazermos uns dias de “lua de mel” na sua casa de Marvão e utilizarmos o Fiat 600 da Natália durante todo esse tempo.
No convívio em Coimbra não houve festarola tipo “bodas”, mas um encontro de muitos amigos, em que cada um levou um farnel para partilha, convivendo e falando muito em conjunto. E um acto simbólico simples de união matrimonial efectuou-se ao fim da tarde, sem uma presença eclesiástica, momento em que o Nuno nos ofereceu o livro da Natália «Mão aberta»!
Desse conjunto de acontecimentos ficou-nos para sempre na memória o calor da solidariedade e da amizade, bem como o compromisso assumido por todos de contribuir para um novo mundo! E a vivência desse dia foi tão intensa que descurámos acções tão habituais, como as dos habituais registos fotográficos, pelo que a primeira fotografia que a Emília e eu tirámos como casados foi já no dia 30 de Dezembro, na acolhedora casa de Marvão… Na casa da Natália e do Nuno, onde iniciámos a nossa vida em comum!
Janeiro de 2025
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2. Maria Alice e Júlio Pereira
A Casa de Marvão e a descida do Guadiana
A Casa de Marvão foi o ponto de encontro de um grupo de amigos reunidos, em 1 de setembro de 1973, pelo Nuno e Mário Brochado Coelho, a exemplo do que, no ano anterior, haviam feito com a descida do rio Douro, desde Barca d´Alva até à sua foz, no Porto; nesse ano, em duas canoas, foram acompanhados do Miguel Teotónio e Jochen Bustorff, cabendo-nos a nós, Júlio, Maria Alice e irmã Filomena Maria, assegurarmos o acompanhamento por terra; na altura, a concentração havia sido feita, na véspera da partida, em casa do arquiteto Alfredo Matos Ferreira.
O grupo reunido em Marvão, agora para a descida do rio Guadiana, tinha como marinheiros o Nuno, o Mário Brochado, a Helena Teotónio e o Jochen Bustorff; como acompanhantes por terra, a Isabel Mota e filha Cláudia, a Graça Mota e amiga Isabel Maria, a Manuela Fazenda e nós, Júlio, Maria Alice, sua irmã Filomena, prima Manuela Vidal e amiga Cristina. Em duas ou três das etapas iniciais, participou, também o Alfredo Matos ferreira, supomos que com a mulher e filha.
Como já referido pela Helena, num seu apontamento na secção Biografia do sítio do Nuno, as etapas diárias, previamente definidas com os meios mais avançados de que à época se dispunha, asseguravam o encontro do grupo (fluvial e de terra) em local que permitisse o acampamento na margem do rio, normalmente a meio do dia, de modo a um saudável convívio e disfrute do rio, aproveitando sempre que possível o contacto com as populações locais.
Recordamos, em especial, um encontro, em café/taberna de Baleizão, ao fim da tarde e onde nos foi proporcionada uma sopa alentejana, assistindo à sua preparação a rigor, seguido de convívio com familiares de Catarina Eufémia e que, para o efeito, haviam trazido, com preocupações de discrição e embrulhado em papel de jornal, um quadro com o seu retrato; a partilha realizada com as canções populares de circunstância criou um ambiente muito intenso e que, provavelmente, viria a originar interpelações da GNR junto dos residentes …
Lembramos um encontro com o poeta popular da Vidigueira, Manuel João Mansos e que proporcionou, no ano seguinte, a edição pela Afrontamento do seu livro “Voz Insurrecta”.
E não esquecemos a hospitalidade de uma família jovem de camponeses, em Pias, que, dada a inexistência de local onde pudéssemos jantar, não hesitou, perante grupo assim numeroso, de em sua casa nos receber proporcionando-nos um saboroso arroz de coelho, tudo preparado no momento.
Passamos por Reguengos, Monsaraz, Mourão, Moura, Pedrógão, Vidigueira e Baleizão, Monte das Pias, Mértola, Pomarão, Alcoutim (onde, acampados no castelo, vimos uma família disponibilizar-nos a sua casa para a higiene matinal), Almada do Ouro (último jantar, simples e frugal, em taberna local) e terminando em Vila Real de Santo António/Monte Gordo, com o almoço de encerramento.
Já no decurso da viagem de regresso, Alentejo acima, começamos a ouvir as tristes notícias do golpe no Chile.
Para o ano seguinte, ficara já marcada nova descida, no rio Tejo, objectivo não concretizado; outras tarefas e vivências urgentes e inadiáveis o 25 de Abril nos colocou!
Uma pergunta nos fica, agora ao relembrarmos estes momentos: o que saberia o Nuno do encontro de Alcáçovas do Movimento dos Capitães que sabemos agora ter-se realizado no dia 9 de setembro de 1973 quando, no dia 7, estando o grupo acampado no Pulo do Lobo se apartou do mesmo e, quando regressou alegadamente de Beja, nos mimoseou com uns pastéis?
Janeiro de 2025
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– Nascimento da terceira filha, Helena
3. Tiago Malato
A Casa de Marvão
Na minha família, existem dois lugares perfeitos que perduram no mais sagrado de nós. O mais elevado deles é Marvão. Mais especificamente, a Casa dos Teotónio Pereira. Marvão é, no imaginário Fragoso Malato, tudo o que acontece à sua volta. Chamemos-lhe aqui “A Casa de Marvão”.
De certa forma, nós “pertencemos aos lugares da nossa infância”. Parte das minhas mais fortes primeiras memórias e das dos meus irmãos faz-se na vila fortificada no topo da Serra do Sapoio, fria no inverno, calada e misteriosa, de onde se diz “ver os pássaros pelas costas”. Ali, na Casa de Marvão, durante duas semanas em setembro, eu, os meus nove irmãos e os meus pais encontrámos um refúgio, propiciado pelo Nuno e pela Natália, um centro de gravidade emocional onde todas as aventuras e amizades fraternas se reforçavam e se tornavam aprendizagens de vida. A casa era um espaço sentido grande em todos nós. Evoco aqui a origem medieval respeitada, as madeiras e os soalhos desgastados, o arquibanco, a mesa e os armários sem idade, os barros, o sentido da cal e da humidade. A sobreloja. Evoco as mantas pesadas com que nos agasalhávamos à noite. Evoco a lareira grande a crepitar, os painéis de azulejo, a arte, a cozinha simples, a pequena entrada traseira, algo secreta, que se revelava para a grande Casa de Marvão. Evoco a comunhão. O que escrevo de rajo, espreita do meu lugar de sexto filho de dez. Sei que o meu irmão Pedro, mais velho, era acolhido com frequência pela Natália e pelo Nuno. Sei que o meu irmão Nuno, também arquiteto, trabalhou mais tarde com o Nuno. Suas vivências serão diversas, mas compartilham todas uma raiz comum. A amizade com o Nuno permanece inteira, a consideração pela Natália imutável, assim como o respeito profundo pela ligação entre os nossos pais e os valores entre eles reforçados. Mesmo quando mais tarde o meu pai se perdia no labirinto do Alzheimer, essa amizade nunca vacilou. Foram sempre eles, rumos na nossa educação, bússolas que nos orientaram sem desvio.
Sinto que herdei de alguma forma um vínculo que atravessa o tempo, uma amizade que se inscreve na memória, e que me liga ao Miguel, à Luísa e à Helena, perpetuando-se na Alice e no Tiago. Amizade ideada que nos mantém os sentidos unidos, inquebrantável, presente. Como se fosse sempre fresca e de ontem a amizade sempre descoberta cúmplice.
A Casa de Marvão transcende o espaço físico. É fluida, um lugar de estar, um caleidoscópio multiforme, um ponto de liberdade, de encontro, de elevação e de passagem, um abrigo de convicções, resistências e esperanças. Espreitando pelo avesso, revela os valores que nela baixam e se consolidam.
É na Casa de Marvão que o Tiago nasce e cresce, firmando-se como homem de valores, guiado pelo caráter inabalável do pai Miguel e pela presença terna e forte da mãe Fernanda. É ali que Miguel, ao decidir sair de Lisboa, encontra acolhimento e um novo território de vida. A Casa de Marvão, sempre um lugar de convergência, de quem busca a liberdade de pensar e agir. Um refúgio, uma promessa, um bastião de valores maiores. É, também, uma casa de resistência. Pessoal e comunal. Apoia os que precisam de atravessar a ditadura a salto, os que procuram um lugar onde possam edificar a liberdade. É a minha casa de liberdade enquanto criança, onde ser e estar profundamente em família se torna a maior das dádivas. As nossas pequenas mãos ensaiam a cestaria de vime, na padaria acompanha-se o moldar dos pães e o forno de lenha, e nos dedos pacientes da minha mãe e dos que com ela aprendem, dança a lã dos tricots ou as contas de grandes rosários de bugalhos. Os pés levam-nos pelos Canchos da Misericórdia, pelas caminhadas até Castelo de Vide, e pelo simples prazer de descobrir o mundo que se adivinha.
“De Marvão vê-se a terra toda”. Escreveu Saramago. Para nós, Marvão foi, naqueles dias suspensos, a terra toda. As muralhas imponentes, guiavam as nossas aventuras. Para além delas, o infinito, desejo profundo e vasto, sem margens.
Apesar da minha família Malato ter as suas raízes em Castelo de Vide, é a Casa de Marvão que nos chama para esses momentos de comunhão e felicidade. É Marvão que nos une e que, pessoalmente, muitos anos depois, faz agora 30 anos, quando eu e Francisca decidimos sair de Lisboa e procurar um novo lugar onde possamos ser úteis e felizes, ressurge no meu mapa mental de afetos. E neste passo, foi o Miguel meu amigo de sempre e primeiro no Alto Alentejo, o nosso apoio e refúgio. Por razões práticas de centralidade urbana, acabámos por escolher Castelo de Vide. Mas Marvão nunca deixa de me espreitar do alto da minha infância.
Hoje, quando regresso, sinto sempre o mesmo respeito avassalador. Num tempo cada vez mais rápido, difuso, incerto e material, evocar a Casa de Marvão é reafirmar a sua dimensão simbólica. É reconhecer que ali, no seu silêncio carregado de ecos, repousam os fundamentos invisíveis de quem sou feito também de tantos que prezo e em mim vivem.
Janeiro de 2025