
PEREIRA, Nuno Teotónio. Memórias inacabadas 3 – Um quarto de século mais tarde, outras viagens a Espanha. Lisboa: 2008
5. Nós tínhamos entretanto comprado em Marvão uma bela casa onde íamos passar férias. Foi nos tempos da PRAGMA, uma cooperativa “de acção social e difusão cultural”, fundada em 1963 e encerrada pela Pide em 67. Mário Murteira, colega da Direcção, tinha ido a Marvão e voltou entusiasmado com as belezas da paisagem e do burgo e os preços irrisórios de casas que estavam à venda. A Vila estava num acelerado processo de desertificação e por isso muitas casas estavam desabitadas – processo que felizmente se inverteu após o 25 de Abril.
Conhecendo Marvão, pois já lá tínhamos estado na estalagem “Ninho d’Águias”, fomos até lá logo no fim-de-semana seguinte, para não perdermos a oportunidade. O Mário e a Aurora tinham visitado algumas casas e houve uma de que gostaram especialmente e que custava 7 contos. Quando, a seguir a Castelo de Vide, avistámos o imponente penhasco, ficámos extasiados. Subimos a estrada sinuosa, alcatroada havia pouco, e fomos directamente à tal casa. Uma construção quinhentista, junto à muralha, com um pequeno quintal anexo e uma vista deslumbrante pela vastidão das terras de Espanha.
Indicaram-nos que a proprietária era uma senhora de idade, que vivia numa pequena fazenda extra-muros, e logo nos dirigimos para lá. Acolheu-nos com a maior simpatia e quando lhe falámos no preço começou com uma longa conversa a dizer que esse valor era demasiado baixo; que amigos lhe haviam dito que a casa valia mais; e mais isto e mais aquilo – uma lenga-lenga que não mais acabava, até que concluiu: “o mínimo por que eu posso vender são 8 contos”!
Claro que logo fechámos o negócio e regressámos à capital, depois de termos pernoitado mais uma vez na “Ninho d’Águias”e conversado com o proprietário de quem ficámos amigos e que se chamava Jeremias da Conceição Dias.
Entretanto, com o prolongamento das guerras coloniais, alargavam-se os movimentos de contestação à ditadura, nomeadamente nos meios universitários. As revoltas estudantis de Coimbra e de Lisboa davam lugar a uma repressão que não cessava de aumentar. Nesse quadro, estudantes e licenciados recusavam-se cada vez mais a ir para a guerra e tentavam sair do país clandestinamente.
Foram para esse efeito algumas das nossas idas a Espanha em fins-de-semana nos finais dos anos 60 e início dos 70. Passando a noite na nossa casa de Marvão, por vezes com alguns amigos, como José Manuel Galvão Teles e frei Bento Domingues, saíamos em pequenos grupos, percorrendo a pé os caminhos que iam dar à Fontanheira, na fronteira do rio Sever. Para não levantar suspeitas e dar aspecto de um passeio familiar com um pic-nic no campo, iam também os nossos filhos. Por vezes, cruzávamo-nos com uma patrulha da Guarda-Fiscal, que de nada desconfiava e com quem cordialmente falávamos.
Chegados ao rio, os jovens que iam passar a salto atravessavam por um pequeno açude, enquanto um carro com amigos cruzava legalmente a fronteira próxima e ia buscá-los para os levar a Cáceres, ou, em alguns casos, a Madrid. Aqui, estavam recomendados a companheiros espanhóis que os encaminhavam para chegar a França, onde conseguiam o estatuto de refugiados políticos.
Mensagem para o Município de Marvão
PEREIRA, Nuno Teotónio. Mensagem para o Município de Marvão. Lisboa: 8 setembro 2010. Existe original impresso, setembro 2010, 2 p.
Mensagem lida em Marvão, em sessão de homenagem, no dia 8 de setembro de 2010, pelo seu neto Tiago Teotónio Pereira
Exmo. Sr. Presidente da Assembleia Municipal,
Exmo. Sr. Presidente da Câmara Municipal,
Exmos. Deputados Municipais,
Exmos. Membros do Executivo,
Caros Munícipes,
A Câmara Municipal entendeu por bem atribuir-me a Medalha de Mérito, alegando o meu “contributo na divulgação do concelho de Marvão”.
Tendo nascido em Lisboa, desde jovem me interessei por entender Portugal, sobretudo a partir da minha profissão de arquitecto, que me levou a procurar conhecer os monumentos e as regiões mais notáveis e, muitas vezes, menos divulgadas. Foi neste contexto que descobri Marvão, nos anos 60, após uma subida penosa por uma estrada muita sinuosa e esburacada, tendo ficado deslumbrado pelo seu conjunto monumental integrado numa magnífica paisagem.
O que me fascinou especialmente foi a vila medieval encimando uma cumeada surpreendente e muito bem aconchegada na encosta.
De tal maneira ficámos apaixonados pelo lugar, que em 1965 eu e minha mulher acabámos por aí comprar uma casa para passarmos as férias, a qual serviu igualmente de ponto de encontro e de estadia a numerosos amigos que, também eles, tiveram a oportunidade de aprofundar a sua relação com a região.
Foi nessa altura que a casa de Marvão serviu como ponto de apoio para actividades em que estivemos envolvidos, no âmbito do combate à ditadura salazarista. A esse propósito, foi-me mais tarde relatado por um elemento da GNR que, se algum carro estacionasse com alguma demora à nossa porta, deveria ser enviado um sinal para a PIDE de Portalegre, utilizando a seguinte expressão: “chegou uma encomenda!”, pouco depois um carro dessa corporação estacionava junto da casa com o fim de identificar os visitantes.
Pela mesma época, tirando partido do conhecimento que tínhamos das redondezas e das rotas utilizadas no contrabando, organizámos várias fugas de jovens mobilizados para a guerra colonial que decidiam sair do país clandestinamente. Juntamente com os nossos filhos, para dar um aspecto de passeio, rumávamos por um caminho estreito até à localidade fronteiriça de La Fontañera, onde uma antiga ponte de pedra possibilitava o atravessamento do rio Sever, que demarcava a fronteira. Entretanto um carro de algum amigo nosso atravessava legalmente a fronteira, indo recolher os fugitivos pelo lado espanhol, conduzindo-os até à cidade mais próxima servida por transportes colectivos, que eles podiam tomar livremente na direcção da fronteira francesa.
Entretanto fui encarregado de fazer os planos de urbanização de Castelo de Vide e Póvoa e Meadas, o que me levou, durante alguns anos, a utilizar a casa de Marvão com bastante frequência. Estas deslocações, somando-se às estadias nas férias grandes, levaram-me a tecer laços fortes com o concelho e os seus habitantes. Também as aproveitava para levar comigo pessoas amigas a quem, com frequência, emprestava a casa para períodos de férias – para todos esses Marvão passou a ser uma referência.
Foi neste quadro que fiz parte em 1969 da lista da CDE (Comissão Democrática Eleitoral) nas eleições para a Assembleia Nacional pelo círculo de Portalegre. Tendo tentado entregar as assinaturas necessárias para o efeito, foi-nos barrado o acesso ao governo civil de Portalegre por já passarem 30 minutos da hora estabelecida. Este atraso ficou a dever-se ao facto de uma grande parte das pessoas abordadas, apesar de algumas serem conhecidas por oposicionistas, terem tido receio de colocar na lista o respectivo nome. Apesar deste fracasso procuramos, aproveitando as liberdades concedidas durante esse período, desenvolver uma activa campanha contra o regime ditatorial. Circunstância que se repetiu em 1975 no quadro do Movimento de Esquerda Socialista (MES) e das eleições para a Assembleia Constituinte, onde fui cabeça de lista; tal como anos mais tarde sucedeu com o Bloco de Esquerda.
De então para cá, sempre tenho estado ligado a Marvão, dado que a nossa casa passou a funcionar como residência permanente da família de meu filho Miguel Teotónio Pereira.
Neste momento tão especial quero também congratular-me com a homenagem que é, finalmente, prestada a Jeremias da Conceição Dias, por mim reclamada em artigo publicado no Jornal Público a 10/10/1994, de quem tive o privilégio de ser amigo e admirador da sua luta incessante pela defesa do património.
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– Jeremias da Conceição Dias