Com o pôr-do-sol do dia 5 de agosto o Miguel partiu, sereno e com muito carinho a acompanhá-lo, da família e dos amigos e amigas. Levou com ele uma vida única e singular, que construiu ao longo de intensos 69 anos, deixando marcas em muitas pessoas e lugares.
A 26 de julho o Miguel partilhou com amigos e amigas e a família mais próxima: “Fui assistindo, paulatinamente, e agradecido, a (muito para mim) confortáveis manifestações de carinho, preocupação e generosidade. Porém, não me apercebi, de início, daquilo que viria a constatar, e que me surpreendeu deveras (e quanto mais nisso penso, mais surpreendido fico): a dimensão e a profundidade daquelas manifestações. Presumo que qualquer de vós terá consciência da importância de que se revestem, para o meu bem-estar global. Já nem sequer me atrevo a agradecer. Qualquer agradecimento ficaria sempre muito aquém daquilo que, na verdade, eu gostaria de exprimir.”
Foi a enterrar no cemitério de Marvão, vila onde viveu mais tempo do que em Lisboa, cidade natal. Rodeado de colegas e amigos de três gerações: os dos seus pais, Natália e Nuno, os seus e das suas irmãs Luísa e Helena, e os dos seus filhos e nora, Alice, Tiago e Blanca. Para todos os presentes o Tiago leu o XXIX capítulo do livro que não chegou a publicar. Ambos, o livro e este capítulo têm como título Trinta (ver em baixo).
Deixamos a seguir uma nota autobiográfica que o Miguel atualizou aquando da publicação de dois poemas seus no número 27 (2018) da revista DiVersos – Poesia e Tradução.
Alice, Tiago, Luísa, Helena e os netos Leo Achik e Tomé
“Miguel Teotónio Pereira nasceu em Lisboa em 1954. Na sua juventude participou em actividades estudantis, de luta contra o regime salazarista-marcelista e a guerra colonial. O 25 de Abril «apanhou-o» no curso de História da Faculdade de Letras, que abandonou para se dedicar em exclusivo ao trabalho político-partidário, tendo acompanhado as esperanças e os desencantos desse período.
Foi fundador do MES (Movimento de Esquerda Socialista), do qual foi militante até à extinção deste, assumindo diversas responsabilidades em diversas áreas. Não migrou para o PS (Partido Socialista). Ficou onde sempre esteve. Aderiu, desde o início, ao BE (Bloco de Esquerda), tendo sido candidato às legislativas por este partido pelo círculo de Portalegre. Por razões várias – político-ideológico-organizativas – cessou há muito essa ligação. A ressaca do PREC (processo revolucionário em curso) «apanhou-o» desprevenido.
Foi, não por esta ordem, operário fabril, da construção civil, cobrador de quotas – porta-a-porta – de uma associação sindical, angariador de sócios – porta-a-porta – de um clube/empresa de leitura, revisor de provas tipográficas, administrativo de uma editora, e de uma empresa de engenharia, vendedor – porta-a-porta – de máquinas de escrever e calculadoras, motorista de uma empresa de construção civil, funcionário de uma cooperativa de produção e de uma cooperativa cultural. Pelo caminho, contactou por dentro sectores sociais e vivências ditos marginais.
Em 1985, faltando-lhe o ar para respirar, abandonou Lisboa, onde nunca se sentiu confortável, e fixou-se em Marvão, onde reside. É técnico de bibliotecas. Textos seus foram publicados nos dois últimos números da revista A Ideia. Tem para publicação, com o título Trinta, um livro que reúne vinte e nove textos em prosa e poesia, e onde sairão também os dois poemas que se seguem.”
TRINTA
Um : há quanto tempo partiu o primogénito! : e nunca novas deu : minha Amada : inquieto-me, e tu comigo : pode um deus errar? : digo : pode : e digo : tinhas um pressentimento, e mo escondeste
: o teu silêncio, eu o mereci : guarda-o : ele é o teu tesouro
Dois : à Terra enviei três servidores, e suas esposas : para que o procurassem : e aquietassem o meu coração : um deles regressou : disse-me : se eu não voltar, dirão na Terra que eu sou o morto : e esse o conservei junto a mim : e mais disse : não encontrei o primogénito
Três : ao terceiro dia nada aconteceu : vejo : o silêncio é branco, pascem crianças que semelham anjos : e ouço : vozes de raparigas, como melodias longínquas sopradas pelo mar : e fazem rodas : as pudicas, as Insensatas
Quatro : regressou um outro dos enviados : disse-me : se eu não voltar, dirão na Terra que eu sou o morto : e esse o conservei junto a mim : e mais disse : não encontrei o primogénito
Cinco : e um cento mais dos meus servidores, e as suas esposas, enviei à Terra : para que procurassem o primogénito : e me dessem novas dele : disse-lhes : cada um de vós, cada qual com sua esposa, correi as partidas da Terra, que são seis mais uma : por elas procurai o primogénito : que se inquieta o meu coração, e com o meu, o da minha Amada
Seis : e não ouses citar o número, e o seu oposto
Seis mais um : eis-nos, Beatriz, no páramo : e como tudo é diferente! : desmaiou o azul do firmamento, foi pela morte a minha obra ferida : vejo : pontos negros onde brilhavam de regozijo as estrelas : tornaram-se barrentas as águas diamantinas : do mar nos chegam bramidos ameaçadores : e são os nossos corações assolados pela tristeza, como são os cardos assolados pelo vento do leste : à nossa direita, eis o assento desocupado : aquele que o ocupava partiu : a meu mando : mando da soberba e do orgulho
Oito : e regressaram dez dos meus servidores : disseram : se não voltarmos, dirão na Terra que somos nós os mortos : e esses os conservei junto a mim : e mais disseram : em nenhures se encontra o primogénito : não há novas dele que te possamos dar : com o guia que levou, ter-se-á aventurado pelas entranhas da Terra
Nove : e disseram ainda : e vivem miseravelmente os teus servidores : e todas as suas esposas, e toda a sua prole : abrasam, e não têm refúgio : mas sem descanso cumprem as tuas ordens : e não cessam de procurar : e desconhecem o seu destino
Dez : então me apiedei deles : e mandei-lhes a chuva, para que se tornasse a Terra fresca e fértil : e crescessem as árvores : e nelas encontrassem a sombra : e do solo brotassem plantas : e pudessem cultivar, e teriam alimento : e persistissem na busca
Onze : vem, Beatriz, vem comigo : juntos correremos as partidas, que são seis mais uma : e nos demoraremos em cada uma das três estações : vem, Beatriz, vem comigo : vê, estamos perto : não avistas já o cume do outeiro?
Doze : e regressaram vinte e um dos meus servidores e esposas : e jovens, e crianças de tenra idade : e disseram : somos nós as mulheres e os homens : se não voltarmos, dirão na Terra que somos nós os mortos : e a todos eles os conservei junto a mim
Treze : e mais disseram : trazemos novas : que delas se contente o teu coração : e com o teu, o coração da tua Amada : estes mesmos serão os juízes da medida do contentamento : ou os carrascos
Catorze : estão as mulheres e os homens espalhados pelas seis mais uma partida : entre nós vive o primeiro de nós : esse, tu o mandaste, esse o perdeste : que ele te perdoe
Quinze : e dele a ti trazemos recado : pois dos mortos fez mensageiros : empunha uma espada, e desfralda uma bandeira : e dizemos-te, como fora ele a dizer-te : eu vos renego, é esta a minha pátria
Quinze mais um : vê, Beatriz : alcançámos o cume do outeiro : que loucura a nossa! : e pensarmos ser o último! : vê : agora se descobre outro, ainda mais alto : à beira do desfalecimento, avistamos o alívio : e ele está já ali ao nosso alcance, por isso caminhámos : e quando lá chegamos, ele recua sempre um pouco : vê, Beatriz : além aquele cume, ainda mais alto : percorremos a floresta dos enganos : e não podemos voltar atrás : e não contes os raios da estrela : e se ela se te apegar, recolhe-te em Confiança
Dezassete : sê forte, Beatriz : não desfaleças agora : não me deixes : agora
Dezoito : vê, minha Amada : o primogénito não te reconhece : o primogénito reconhece aqueles a quem chama de irmãos : como poderíamos deixar de amá-lo?
Dezanove : e quando ele chorar de mansinho, nas trevas do seu coração, não lhe acudas : não perturbes a Consciência a erguer-se : ama-o em silêncio : sementes enterradas no solo dão à luz, dolorosamente : não as perturbes
Vinte : e diz a essa a quem chamas de irmã : diz-lhe por meu recado : desembaraçai-vos, Senhora, dos vossos mantos, dos vossos brocados, das vossas grinaldas e adereços : diz-lhe, como fora eu a dizer-lhe : para que possa eu inundar o vosso corpo : e a minhas mãos venham o teu Sol, e a tua Lua
Vinte e um : e até à incontável geração : na qual estamos : a mim vieram, sem parança, as mulheres e os homens : e a todos esses os conservei junto a mim
Vinte e dois : e novas me traziam dos vivos : diziam :
Vinte e três : Senhor, os vivos tudo confundem : e fizeram-se senhores e servos : e fizeram-se reis e escravos : e doutos e ignorantes, incréus e profetas : e esbracejam : e multiplicam-se : e imperam sobre a Terra, e sobre as mal chamadas criaturas : e choram
Vinte e quatro : e eu sempre me apiedei deles : e dei-lhes nove círculos, para que usem a sua têmpera
Vinte e cinco : e dei-lhes o sono : e os pesadelos : para que acordem aterrorizados : e não possam esquecer
Vinte e seis : e dei-lhes as portas, para que as limpem : terão assim o que fazer
Vinte e sete : e agora : parto eu : a obra por minha vez renego : que já não a reconheço : serei o verme retalhado pelo arado de bronze: anima mundi
Vinte e oito : e é e será dos vivos a obra : não escaparão à tentação de a atribuir a outro : o erro tem que ser percorrido : para que se esgote
vinte e nove : perdoa-me, Beatriz
vinte e nove mais um : o silêncio é branco : e plano, e horizontal : não ascende, nem descende : e assim será : posso agora dormir
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