PALAVRAS SOBRE O AMIGO NUNO
Quando penso no Nuno, é todo um mundo de lembranças que se reabre. De todas elas, lembro-me, sempre e sobretudo que o Nuno esteve presente num dos momentos mais importantes e mais difíceis da minha vida. Momento este que foi decisivo para que acontecesse muito do que a seguir me sucedeu. A decisão tomada nessa altura mudou muito da minha vida, quer pessoalmente, quer politicamente, quer profissionalmente.
Fui expulso da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra em 1971, na primeira metade do ano, por actividades políticas e dirigi-me para Lisboa, onde me mantive inserido em várias actividades políticas e anticoloniais, sempre em contacto com o Nuno e outros camaradas. Um pouco mais tarde, fui incorporado na tropa, perdendo o direito ao adiamento desse serviço militar e ordenaram-me apresentar em Mafra em Maio de 1973, para frequentar a “Recruta” para oficiais futuros. Apresentei-me, sem ainda saber muito bem o que fazer. Fui, nas dúvidas. Frequentei a recruta. No último dia de recruta – 26 de Julho de 1973, uma quinta-feira – quando cada um recebia a “Guia de Marcha” para a especialidade, eu recebi uma “Guia de Marcha” para ir para Angola, no dia 31 de Julho – passados 5 dias – onde iria frequentar a especialidade de atirador como soldado raso, apesar da minha frequência universitária. No Sábado imediato, estava em Lisboa para uma reunião onde estavam o Nuno, o Zé Dias e o saudoso Vitor Wengorovius, afim de se analisar o que deveria fazer. Posto perante as duas opções:
– desertar, estando a minha fuga já toda delineada, com contactos, meios de transporte, etc. ou,
– ir para Angola, fazer “trabalho político” na tropa, influenciando os militares contra a guerra e contra o regime político português e organizando atitudes de protesto, existindo um contacto lá para tentar, no início, apoiar-me.
Posto perante estas duas alternativas que me foram colocadas pelo Nuno, com total franqueza, foi-me dada completa liberdade quanto à decisão a tomar, dizendo-me o Nuno: “Faças o que fizeres, cá estamos nós e toda a organização para te apoiarmos, sempre. Mas a decisão, meu amigo, é só tua. Nisto não há ordens. Mas, pensa sempre nos outros.”
Decidi ir para Angola. Longos abraços se seguiram, sobretudo o do Nuno em jeito de urso polar e no dia 31 de Julho embarquei para Angola, de onde apenas regressei no dia 28 de Fevereiro de 1975, já como Alferes, a que havia sido promovido após o 25 de Abril.
Devo dizer que este tempo de Angola foi muito e muito bom: fizeram-se muitas coisas, actividades e amizades e nunca disparei um tiro. Os contactos mantiveram-se.
Estive sempre com o Nuno no Partido que surgiu daquele “movimento” onde eu me integrara e que se transformou no único partido de que fui militante e que o Nuno ajudou a fundar: o MES. Não sei o que teria sido da minha vida se tivesse desertado. Tenho é a certeza que seria muito e muito diferente. E, no momento dessa decisão lá esteve o Nuno, sempre com o seu abraço amigo, cigarrito ao canto da boca e o sorriso aberto e puro. Pronto para ajudar, sempre. Assim como durante o tempo em que estive em Angola.
O Nuno não era pessoa de muito falar, de fazer grandes e compridas intervenções. Falava, tão-só, o que achava necessário. Deixava as grandes tiradas para outros. O Nuno era, principalmente, de fazer. Fosse na Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, fosse no GEDOC, fosse no BAC (Boletim Anti-Colonial), fosse na Arquitectura ou na sua vida pessoal. Era um exemplo que muitos de nós, ouvíamos e seguíamos. Teve foi algumas pedras no seu percurso – que ele antevia mas não enjeitava – que o levaram a passar, de forma irregular e nem sempre aguardada, períodos de “descanso” a ver o mar em Caxias…
A última lembrança que guardo, num canto muito meu é de quando, pouco tempo antes dele nos ter deixado, fui a Lisboa vê-lo em casa e aonde lhe levei um “Pão-de-Ló”. O Nuno já não via mas agarrou-se ao doce e deu-lhe o destino apropriado…..E ria-se enquanto se enchia com o doce…
O abraço enorme, a palavra amiga, o coração onde cabiam todos, fossem quais fossem as circunstâncias, esse era o Nuno, sempre pronto e disponível para ser solidário com os outros. Não apenas apregoando as palavras.
Álvaro Correia Vilas
Ovar, Janeiro de 2022
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